Assim disse Gabriel García Márquez e assim continua nascendo, como em 6 de março de 1927, como se 17 de abril de 2014 nunca houvesse existido, como se as suas palavras o trouxessem de volta, “una y otra vez” - e trazem.
Essas palavras passaram dos livros aos corações e de coração a coração se disseminaram, ganharam corpo, impedem que os leitores de Gabo se sintam órfãos.
Desde que lemos pela primeira vez as cartas de amor dos soldados, as agonias dos coronéis, acompanhamos o general em seu labirinto, os tempos do cólera, desde que nos enraivecemos com os ditadores decrépitos que Gabo descreveu e cuja alma revelou, que nos comovemos com os escravos mortos pelas companhias bananeiras, que soubemos que as mulheres não eram capazes de dar-se conta de que estavam cegas por haver adquirido um conhecimento do mundo muito superior ao dos sentidos... lançamo-nos em labirintos dolorosamente humanos...
O Prêmio Nobel de Literatura de 1982 consagrou sua dignidade que já conhecíamos, revelando-a ao mundo. Desde 1967, a América Latina, na pena de Gabriel García Márquez, já fora redescoberta, porque ele se encarregou de nomear coisas que até então não tinham nome, os sentimentos que até então não haviam sido traduzidos:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Estas são as primeiras palavras que redescobriram a América Latina, cujo mistério é uma experiência fundacional, como ler Cem anos de solidão.
Sua escrita é de realismo mágico, inventado na Europa no boom dos anos sessenta e setenta. Através dele, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Murilo Rubião, Mário de Andrade, Érico Veríssimo, Moacyr Scliar, Alejo Carpentier, Rubén Darío, Octavio Paz, José Martí, dentre tantos outros - e Gabriel García Márquez, especialmente, - deram nome a imagens latino-americanas e inventaram um continente e sua consciência, comunicando-o ao resto do mundo.
Tudo o que sabíamos sobre Gabo é ficção. Tudo o que não sabíamos também. A dimensão subjetiva de cada personagem é a sua plenitude, é a representação de sua memória, como disse em Viver para contá-la: “A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la”.
Mas não foi O outono do patriarca, que vale um Prêmio Nobel, nem Os funerais da Mamãe Grande ou Ninguém escreve ao coronel, A incrível e triste história da cândida Erêndira e de sua avó desalmada, O amor nos tempos do cólera e tampouco O general em seu labirinto tudo o que encantou em Gabriel García Márquez.
Infinitas são as razões que tornam Gabo um mito, dentre as quais o fato de ter ensinado que a profissão de jornalista, que honrou como poucos, consiste em dizer a verdade e em escrever algo mais do que manchetes. Desde Relato de um náufrago, na época em que Truman Capote e Tom Wolfe teorizavam sobre o que Rodolfo Walsh, uma década antes havia estabelecido – o New Journalism -, até Crônica de uma morte anunciada ou Notícia de um sequestro, definiu não apenas uma profissão, mas um gênero literário, como uma crônica do que se refere à América Latina.
Gabo é também a história viva da América Latina, o narrador de mitos que ensinou que, sob esse mundo mágico existe uma dignidade eterna, como a de Úrsula Iguarán e de tantas outras mulheres e tantos outros homens da mesma estirpe latino-americana.
Ele nos explicava o mundo, foi ele quem "nos levou para conhecer o gelo". Hoje, diante do pelotão de fuzilamento, em um mundo no qual tantas coisas carecem de um nome, Gabriel García Márquez continua nascendo para nomeá-las. Graças a ele aprendemos a compreendê-las, graças a ele não nos esqueceremos de quem somos.
Por isso ele nunca partiu: continuará nascendo, em cada corredor desse labirinto de palavras em que a cada página descobrimos também algo de nós que ainda não conhecíamos. E assim será, porque dentre todos os mitos, Gabo é a nossa eterna revelação...