Começou a escrever muito cedo. Segundo Edla van Steen, escreveu sua autobiografia com a idade de seis ou sete anos; tinha ido à padaria e, no papel do pão, escreveu a “história de sua vida”, certamente muito curta, mas o papel circulou por todo o bairro, fazendo-o sentir-se orgulhoso pelo interesse da comunidade em sua história.
Considerado um escritor do realismo mágico, um mestre da literatura fantástica, tendendo ao absurdo, contexto no qual talvez pudesse ser comparado a Kafka ou Cortázar por critérios de aproximação, duvidosos, porém plenos de sentido: com Kafka, como judeu, compartilhava a condição de deslocado na vida; a escritura de Cortázar e a leitura laica da Bíblia foram identificações pessoais e um fascínio constante e apaixonado.
Descendente de judeus russos que imigraram para o Brasil para salvar-se dos progroms, radicando-se o Rio Grande do Sul, e fundando colônias e comunidades agrícolas, herdou firmes ideais e também grandes ilusões.
Este é o cenário e o enredo de O Exército de Um Homem Só, seu primeiro romance, uma trama que conduz livremente a uma reflexão sobre política e sobre a condição humana.
Seus antepassados, cujos sonhos via de regra se frustravam ou se destruíam violentamente, os filhos e netos dos imigrantes, residentes no bairro judeu do Bom Fim, em Porto Alegre, são o núcleo da criação literária de Moacyr Scliar. Inclusive ele próprio, com suas inclinações, com seu humor pessoal obscuro, suave, por vezes picante e ácido, também visita essa obra.
O ponto de partida do que escreve não são eventos reais, mas sim a ideia e a imagem, que precedem a narrativa, que por sua vez passa a refletir, de uma forma concentrada, densa, obsessiva e dolorosa, a tensão de haver nascido judeu, de ser “diferente”.
Em Os deuses de Raquel, por exemplo, inicia escrevendo: “Eu sou aquele cujo verdadeiro nome não pode ser pronunciado. Admito, contudo, ser chamado de Jeová”. Na revelação final, registra: “Não sou Miguel. Sou aquele cujo nome não pode ser pronunciado...”.
Miguel é filho de um sapateiro judeu, proveniente da Polônia, de classe social inferior à dos pais de Raquel; fanático religioso à beira da loucura. Acredita amá-la desde pequena. No entanto, a persegue, a ameaça, controla seus passos com sua ira, articulada em palavras que parecem ser bíblicas, mas não o são. Miguel a destrói, sem que Raquel tenha a mínima possibilidade de compreensão ou de defesa; destrói suas ligações emocionais, sejam aqueles a quem ama um homem ou um cão. Miguel destrói a alma de Raquel.
Uma trama presente na obra, situada na época da ditadura militar, é o choque adicional com o catolicismo intolerante. Raquel é enviada a um colégio de freiras, porque seu pai quer que aprenda o latim. Ao mesmo tempo em que se vê fascinada pela beleza das estátuas da Virgem e dos santos, apavora-se com o terror do inferno, caverna subterrânea, lago líquido de fogo, almas em sofrimento, vigiadas por monstruosos demônios; gritando de dor por toda a eternidade, sem esperança.
Scliar foi aluno de uma escola católica, junto a dois outros meninos “diferentes”: um protestante e um negro. Tinha pesadelos, tentou fugir, evadir-se, convertendo-se em um “católico disfarçado”, assim como Raquel:
Ao ler os contos de Sholem Aléijem, ao conhecer os quadros de Chagall, revelou-se a ele que era diferente, sim, mas como muitos outros...
Proveniente de família pobre, os pais lhe abriram os olhos para o mundo real: “passamos por muitas dificuldades. Não de falta do que comer, mas era uma vida muito dura”. Uma coisa, porém, nunca faltava: livros. Os pais sempre fizeram todo o possível para que tivesse livros para ler.
Estudou medicina, apesar de desejar ser escritor desde criança, formando-se em 1962 e trabalhando por mais de quinze anos como médico sanitarista e em um hospital, na ala dos doentes de tuberculose, até decidir-se pela profissão que sempre fora sua necessidade elementar, a de escritor. Também foi militante político no movimento estudantil e nos movimentos progressistas do Rio Grande do Sul que frustraram o primeiro intento de golpe militar, em 1961.
Um de seus livros, que reflete os anos entre 1961 e o dia do golpe de 1964, A festa no Castelo, tem no título e nas duas histórias contadas (muito complexas, contrapostas e inter-relacionadas, ao mesmo tempo) a evocação imediata da pessoa do general Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro ditador militar. Os personagens principais de uma das histórias são: Nicola, velho sapateiro, sábio, socialista, imigrado ao Brasil depois de ter lutado, inclusive, na Guerra da Espanha, contra Franco; e Fernando, seu discípulo e amigo, que tem um pai que pertence a um grupo que conspira contra os usurpadores militares.
Os militares brasileiros - há que se dizer - não intentaram exterminar toda a manifestação de inteligência criadora existente, porque tinham interesse em apresentar o Brasil exteriormente como uma nação de grande vida cultural. Assim, ao mesmo tempo em que queimavam e censuravam livros, perseguiam escritores e seus leitores, também premiavam outros, menos críticos que os “subversivos” proibidos.
Moacyr Scliar foi uma voz que se destacou no conjunto de escritores que construíram seus mundos criativos sob o peso da ditadura, da cultura da destruição, somando-se aos que romperam barreiras e fronteiras materiais e espirituais fundadas na alienação e no medo, os monstros que também criam ignorantes.
Para minar os muros impostos, Scliar utilizou-se de clichês e de elementos do romance, como no livro O centauro do jardim, cuja trama se refere à transformação física do centauro em um ser de aparência mais humana, com paralelo na angústia do homem da sociedade contemporânea e, precisamente, do homem judeu nesta sociedade.
Durante a ditadura, publicou livros sobre temas perturbadores, do realismo fantástico de incômodos personagens à temática da violência e da mentira, com em Mês de Cães Danados e A Balada do Falso Messias.
Também, em Doutor Miragem, ao invés do único herói salvador, existem dois heróis: o médico, descendente de imigrantes italianos, sequestrado; e o homem brasileiro comum, do povo, o sequestrador. Na primeira cena, o sequestrador traz uma galinha, certamente roubada, comentando que irão comer bem e mata o animal de forma tão angustiante que simula um homicídio. Felipe, o médico pensa: “Este homem quer me assustar... Me olha, o homem, pensando que a morte me espanta. Se engana. Sempre pensei na morte. Não é de agora. Tenho trinta e dois anos, sou médico; mas penso na morte desde menino”.
A obra reflete um duelo existencial de obsessiva intensidade e é, ao mesmo tempo, uma denúncia não menos tensa da situação atual: a situação de um médico em risco constante de corrupção total e a situação da saúde pública – o sequestrador, desesperadamente pobre, um doente desesperado.
A dura realidade, na pena de Moacyr Scliar, é testemunha de transformação da inquietude pessoal e dos seus leitores em mundos imaginativos vitais, libertadores.
Membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor do Prêmio Jabuti por três vezes, Scliar não conseguiu ser um homem religioso, em que pese sua obsessão pelos grandes temas humanos para os quais as religiões buscam respostas – o pecado, a culpa, o sexo e a morte.
Se os grandes temas espirituais se transformaram na sua matéria prima e se solidificavam em personagens, também a reflexão crítica sobre a história, o homem, a suposta “normalidade” das maiorias, o valor das diferenças, a injustiça e a dureza da vida perpassaram cada uma de suas palavras.