Consequente e solidário, o mundo inteiro conheceu sua grandeza como homem e como escritor. Sua excelência como homem moveu sua mão e sua luta. Amou sua terra a tal ponto que, quando Portugal se escandalizou com sua interpretação dos textos sapienciais, exilou-se na Espanha, vitimado pela lamentável censura de sua nação.
Saramago cumpriu o papel de criador fazendo de sua arte uma navegação sem remos e sem motores, um avanço trabalhoso com as próprias mãos. Manteve-se fiel ao questionamento de tudo o que lhe surgiu como verdade imutável e como dogma eterno até seus últimos dias, quando, mesmo doente, trabalhava em uma obra que obrigaria o leitor a questionar posições sobre o tráfico internacional de armas.
O velho-jovem criador nos deixou, aparentemente, sozinhos, lembrando que o homem é o lobo do homem, que é preciso muito esforço para compreender, que é necessário questionar, especialmente o poder, a debilidade do homem, seu lado obscuro, o egoísmo que o alimenta.
Ensinou que apenas se conquista a liberdade aprendendo a desaprender e assim construiu uma obra que, para que possa ser compreendida, é preciso abandonar as armaduras, ler em liberdade, com o desejo de voltar a aprender, porque a obra de Saramago é uma comunicação de homem a homem, é uma viagem de idas e de vindas.
Saramago aconselha que tenhamos coragem para enfrentar os nossos próprios limites – os juízos prévios, as construções arcaicas de nossas convicções - e, sobretudo, o medo de nos determos diante da linguagem dos outros. Precisamente por isso aconselhava: “leia o livro em voz alta”.
A palavra escrita tende a consagrar-se, o que conforma a alguns e incomoda a muitos. Saramago incomodou, foi amado e odiado pelas mesmas razões e com a mesma intensidade. O incômodo de suas palavras levou a enfrentamentos que procurou evitar, mas dos quais não recuou.
Talvez o exemplo mais evidente de sua postura, de sua coragem e de sua estatura moral esteja na obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e na reação que causou. (Cabe aqui perguntar: por que Dan Brown, quando escreveu o Código da Vinci, não foi censurado e sim consagrado, enquanto Saramago exilou-se? Talvez porque, contrariamente, Saramago não buscasse o aplauso fácil, o alcance do senso comum, mas apenas desafiar-nos a remar contra a corrente do estabelecido, pelo nosso próprio esforço.)
Como bom comunista e como bom ateu, desconfiou, denunciou, envolveu-se. Incansável e inquieto, seu compromisso político e social esteve à altura de sua pluma; amigo do diálogo e da ironia, buscando incessantemente a verdade, rastreando a terra em busca de alguma esperança, esquadrinhou entre pesadelos e injustiças, como um cego em sua ânsia pela luz.
Saramago nos ensinou a ler novamente, a ver novamente, porque a sua obra se abriu e se abre como um mundo sem limites para que nos vejamos como partes de um universo profundamente humano.
Por todas essas razões, mesmo tendo partido, Saramago não nos abandonou - já havia nos dito que não estamos sozinhos, que “somos nos outros”. A leitura de sua obra faz com que nos sintamos parte de uma comunidade mais ampla, uma comunidade ao mesmo tempo cultural e espiritual, sem fronteiras, que pensa a si mesma e que descobre sempre novas possibilidades para ver, para ser e para existir.
Sobretudo, não estamos sozinhos, porque podemos “ser” através da sua obra, porque a utopia não acaba, porque as palavras são eternas, como eterna é a lição que nos deixou José Saramago.