Um avião repleto de passageiros desconhecidos que, mesmo que não saibam, estão unidos pela pior experiência de suas vidas.
Um restaurante de estrada no qual as atendentes parecem diametralmente opostas entre si, mas não o são.
Uma estrada e dois automóveis: um zero quilômetro e outro velho e deteriorado e seus motoristas.
Um engenheiro que tem seu automóvel guinchado.
Um filho de milionário que atropela e mata uma mulher grávida e foge.
Um casamento no qual a noiva faz uma descoberta.
Estas são as seis histórias de Relatos Selvagens, que aparentemente não guardam qualquer relação entre si, porque não se encontram, não se conhecem.
Porém, o centro da vida de cada um é o mesmo: a violência contida em pessoas como quaisquer outras e que subitamente explode.
Este é o denominador comum do filme escrito e dirigido pelo argentino Damián Szifrón e produzido por Pedro Almodóvar, Agustín Almodóvar e Hugo Sigman.
São seis histórias em uma, muito mais que relatos de violência e humor negro – histórias de vidas sempre contidas, sempre sublimadas, exposta à violência institucionalizada do cotidiano, à “normalidade” de uma vida de exploração e de manipulação que, em determinado momento, “devolve o insulto tantas vezes recebido”, sem controle e sem medir consequências.
A explosão violenta é um momento de libertação, desejo que todos temos, um momento que divide o homem contido à força de regras de convivência social e cultural do homem que libera toda a sua energia para poder continuar vivendo.
A catarse não é dos personagens, mas dos espectadores, que de alguma forma se projetam no inusitado das cenas, conectam-se com o momentâneo prazer de exteriorizar a raiva contida, com o desejo de libertação que não pode ser realizado senão através da arte.
O impacto – positivo ou negativo – do filme diante da crítica, por conta da projeção da violência das cenas, das imagens, das relações entre os personagens busca, em última análise, um reequilíbrio entre a tensão e a liberação, a crua realidade e o humor, em cenas de extrema violência que arrancam um riso nervoso, por vezes cúmplice, que faz sentir que o espectador, diante da mesma situação, poderia reagir da mesma forma que o personagem.
Essa identificação entre personagem e espectador é algo que assusta, porque desafia a reação socialmente esperada, mas que por instantes, durante o filme, parece aceitável, ainda que temerária; engraçada, ainda que nervosa.
A empatia entre personagem e espectador não tem fronteiras: o filme não fala apenas dos conflitos cotidianos dos argentinos e tampouco narra atitudes de extrema violência que apenas algumas pessoas gostariam de assumir. O que chama a atenção para o filme é o fato de que qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, pode viver as situações narradas.
Os conflitos são de todos e o que é tocado pelas histórias é uma fibra íntima de todos os homens, na qual a vingança, a justiça pelas próprias mãos e a luta de classes ou a maldade pura e simples fazem com que cada um, por um lado, reprove aquelas atitudes, mas, por outro lado, saiba que no fundo seria capaz de fazer o mesmo.
Relatos Selvagens inverte os papéis: o selvagem serve como uma máscara para o humano. Há uma violenta erupção do que é reprimido, dos pesos que se carrega e se suporta todos os dias, que são contínuos e ininterruptos.
A violência, portanto, é apenas aparente. A intenção é restaurar valores humanos, de forma arriscada, mas sempre uma espécie de purificação da alma que quer viver em paz, em qualquer cultura, em qualquer lugar do mundo.
Pode ser, mesmo, uma demonstração de cinismo, mas em nenhum momento Szifrón renuncia aos valores que sustentam a sociedade – pelo contrário, leva a pensar sobre eles como princípios ausentes, como promessas não cumpridas que massacram e que mascaram uma violência cotidiana muito mais vívida e destrutiva do que a catarse promovida pelas cenas de Relatos Selvagens.
Indo além, o propósito do filme não é o de retratar histórias, mas através delas revelar um estado de coisas percebidas como um desajuste da condição humana, letal e irreversível.
A co-produção hispânico-argentina, de qualquer modo, merece um olhar mais atento, porque não pode ser vista apenas como um filme violento. É um filme que une o humor à reflexão, porque essa raiva reprimida existe em todos e todos, em maior ou menor medida, têm seus próprios “relatos selvagens” contidos no limite, em diversas situações da vida.