Sua pena acompanhou a conquista e a espoliação da América, a guerrilha na selva, os operários nas fábricas, os mineiros, os cortadores de cana, os heróis e os esquecidos. Denunciou o que até então permanecia calado, invisível.
Foi, ele também, censurado, perseguido, exilado, um gênio incomparável, autor de obras primas como As veias abertas da América Latina, uma história de gente comum que tornou-se extraordinária, e Memória do fogo, trilogia que tece magistralmente um retrato latino-americano, duro, mas pleno de esperança; lúcido, mas porta-voz de milhares de sonhos.
Seus livros contestam frontalmente a realidade, espelhando as incoerências do mundo, alertando que declarações sobre direitos humanos foram proclamadas, mas que a imensa maioria da humanidade apenas tem o direito de ouvir e calar. Defende, acima de tudo, o direito a sonhar, a olhar para aquilo que não se olha, mas que precisa ser visto.
Afirmou que delirava, “com um olho no microscópio e outro no telescópio”, contando as histórias de gente anônima, desprezada, do micro-mundo que anima o universo e, ao mesmo tempo, contemplando o universo a partir de coisas pequenas, da persistência humana na luta por um mundo que fosse “a casa de muitos e não a casa de poucos e o inferno da maioria”.
Sobre los nadies - as vítimas, os esquecidos, os que dão sentido à sua denúncia, “os que não são, ainda que sejam”, “que não são seres humanos, mas recursos humanos”, “que não têm nome, mas número”, “que não têm rosto, mas braços”, “que custam menos que a bala que os mata” - escreveu muito e sempre.
Não ocupou-se apenas dos nadies latino-americanos, mas também dos migrantes, “que aspiram ser tratados como se trata o dinheiro”, sobre os muros - físicos ou não - que se impõem entre os homens: os muros que tornam os homens incomunicáveis, que são construídos pelos grandes meios de comunicação, e os muros que surgem todos os dias, em todo o mundo, maiores que o de Berlim e dos quais nada se fala...
Sua indignação alcançou todos os muros erguidos pelos homens: no Saara, na Cisjordânia, em Ceuta e Melilla, no México, no Marrocos para dividir territórios ocupados, homens e destinos.
Sua sensibilidade percebeu a surdez dissimulada do mundo, dos países que insistem em não ouvir, em permanecerem inertes, a emitir resoluções através da ONU que confirmam direitos que nunca alcançam seus destinatários e que quando são exigidos são vistos como suspeitos, porque, afinal, “o patriotismo é, na atualidade, um privilégio das nações dominantes. Quando praticado pelas nações dominadas, o patriotismo se torna suspeito de populismo ou terrorismo, ou simplesmente não merece a menor atenção”.
Sua percepção buscou a causa das pequenas barbáries, da desigualdade e da injustiça e apontou os responsáveis. Retornou ao passado para que eles fossem expostos, para reiterar que o subdesenvolvimento da América Latina sempre foi a história do desenvolvimento alheio, uma história de cinco séculos, o resultado da espoliação e do saque como processo histórico. Especialmente em As veias abertas da América Latina, verdadeira Bíblia Latino-americana, percorre essa história de indignidades e aprofunda essa verdade.
Décadas mais tarde (porque sempre foi o melhor crítico de seu próprio trabalho) afirmou que não seria capaz de reler esse livro, que não possuía conhecimentos de economia ou de política ao escrevê-lo. Apesar disso, o livro, dois anos depois de publicado, com o golpe de Estado no Uruguai, o forçou ao exílio e, para sempre, mostrou à América Latina a sua própria face, uma face da qual não é possível esquivar-se.
Durante o exílio continuou a procurar “os sequestradores de países, os estranguladores de salários, os exterminadores de empregos, os violadores da terra, os envenenadores da água e os ladrões do ar... os traficantes do medo”.
Enquanto dava nomes a eles, seguiu na busca “desse outro mundo possível”, que “talvez esteja na barriga deste” e que, se existe, espera para nascer, por mais que pareça impossível. Essa utopia “está no horizonte, eu sei que não a alcançarei. Se eu caminho dez passos, se afasta dez passos. Quanto mais a procurar, menos a encontrarei, porque se afasta à medida que eu me aproximo”, mas para isso serve: para caminhar.
Em 2009, quando perdeu seu amigo, o poeta Mario Benedetti, Galeano, sem conseguir falar, calou-se diante da imprensa, até o momento em que disse: “a dor se diz calando”. Em 13 de abril de 2015 muitos calaram, porque o perdemos e, com ele, talvez mais um pouco de nossa humanidade.
Galeano em onze obras essenciais
Publicou mais de quarenta livros que marcaram várias gerações, traduzidos e premiados em todo o mundo. Destes, todos são imprescindíveis, mas alguns são essenciais.
- Dias e noites de amor e de guerra: Em 1978, no exílio, Galeano publicou a obra em um contexto de desaparecimentos e assassinatos de vários de seus compatriotas. É uma crônica impressionante e reveladora do tempo transcorrido entre maio de 1975 e julho de 1977, que retrata de forma rigorosa o horror políticos destes dias. Sobretudo, é um livro sobre o amor, a amizade, as coisas que motivam a viver e a lutar contra o medo e a inércia.
- Memória do Fogo: A trilogia, publicada entre 1982 e 1986, conta a história da América Latina desde a criação do mundo até a atualidade através de relatos sucessivos e ordenados cronologicamente: “Os nascimentos: da criação do mundo ao século XVII”; “As caras e as máscaras: – séculos XVIII e XIX” “O século do vento: século XX”.
- O livro dos Abraços: Terno, surpreendente, caloroso, através de relatos breves traz crônicas, sonhos, memórias, historietas e acontecimentos que podem ser lidos em qualquer ordem. São relatos memoráveis, tais como “A cultura do terror”, “O sistema”, “Alienação”...
- As palavras andantes: O livro, publicado em 1993, fala de política, do mundo, da história, da sensibilidade de Galeano através e contos, minicontos, histórias breves, conselhos, minicrônicas e relatos. Foi ilustrada por quatrocentas imagens do artista brasileiro José Francisco Borges.
- Úselo y tírelo: O livro, de 1994, não foi editado em português. Nele, Galeano alerta sobre a voracidade e o cinismo de um sistema que devora homens e terras para em seguida descartá-los, esgotados. Esta antologia, preparada pelo autor, reúne textos “verdes e ecológicos” que comovem pela profundidade das verdades nela contidas.
- O futebol ao sol e à sombra: Apaixonado pelo futebol, Galeano homenageia o esporte neste livro, publicado em 1995, retratando sua musicalidade e seu caráter festivo, mas também denunciando as estruturas de poder de um dos negócios mais lucrativos do mundo.
- De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso: Em 1998, Galeano publicou essa irônica obra, onde demonstra a influência da lógica capitalista tanto nas atividades e nas ações mais humanas e cotidianas como na política, na economia e no consumo. É um guia que revela, com enorme dureza, o estado atual de um mundo que parece esquizofrênico, mas, na realidade, é transparente na intenção política de suas aparentes contradições.
- Bocas do tempo: Publicado em 2004, condensa diversas pequenas histórias que, juntas, são uma única história: a relação do homem com a natureza. Seus protagonistas surgem e desaparecem para continuarem a viver, história após história, em outros personagens, que lhes dão continuidade. Tecidos pelos fios do tempo, esses personagens são “o tempo que fala”, são as bocas do tempo.
- Os filhos dos dias: Uma de suas últimas obras, publicada em 2011, reúne trezentas e sessenta e seis histórias de heróis anônimos e de fatos surpreendentes de épocas distintas, convertendo-se em um calendário: “E os dias se puseram a andar. E eles, os dias, nos fizeram. E assim nascemos nós, os filhos dos dias, os buscadores da vida”.
- Mulheres: Obra póstuma, integrado por uma série de textos breves que transitam de forma extremamente sensível pelo universo feminino. Essa travessia inclui caminhos que se detêm em algumas figuras icônicas como Juana de Arco, Rosa Luxemburgo, Emily Dickinson, Rigoberta Menchú, Eva Perón, Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Alfonsina Storni, Alicia Moreau, Bessie Smith, Safo, Aspasia, Frida Kahlo, Carmen Miranda, Isadora Duncan, Sarah Bernhardt, Teresa de Avila, Matilde Landa, as Madres de Plaza de Mayo, Delmira Agustini, Camille Claudel, Georgia O’Keefe, Josephine Baker, Marie Curie, dentre tantas outras artistas, poetisas, cantoras, bailarinas, cientistas, escritoras e militantes políticas de todos os tempos.
Também conta histórias de mulheres esquecidas nos labirintos ingratos da memória, de prostitutas rebeldes, das guerreiras da revolução mexicana, das mil e quinhentas mulheres que invadiram o Parlamento no Cairo na década de cinquenta, as operárias, costureiras, cozinheiras, faxineiras, floristas, padeiras, que lutaram na Segunda Comuna de Paris...
Um texto de beleza incomum é Bessie: “Esta mulher canta suas feridas com a voz da glória e ninguém pode fazer-se de surdo ou distraído. Pulmões da noite profunda: Bessie Smith, imensamente gorda, imensamente negra, maldiz os ladrões da Criação. Seus blues são os hinos religiosos das pobres negras bêbadas dos subúrbios: anunciam que serão destronados os brancos e machos e ricos que humilham o mundo”.
Como um grande e inquieto feiticeiro, que mistura palavras, imagens, sentimentos e desobediências, oferece ainda um último livro, depois de sua morte, respirando ainda através das mulheres a quem empresta, pela última vez, a sua voz.