Embora a figura e a obra da escritora sejam consideradas por alguns o princípio da geração do pensamento feminista na idade moderna, pela forma como transformou momentos efêmeros da vida em uma concepção espiritual e artística que transcende a separação entre os universos masculino e feminino, em essência ofereceu ao mundo respostas valiosas sobre a vida, a morte, a identidade, o gênero e a literatura – porque a arte que amou em vida se encontra intimamente unida às suas personagens e à história que as envolve.
Possivelmente uma dessas respostas – e talvez a mais enfática – seja Orlando, uma autobiografia na qual um jovem aristocrata se transforma em mulher. A vida desse personagem andrógino transgride os conceitos de gênero, satiriza a biografia e o próprio discurso feminista e rompe com os padrões da sociedade inglesa da época para expor suas contradições e revelar suas obscuridades.
Orlando é, ao mesmo tempo, uma carta de amor a Vita SackVille-West, com quem viveu uma relação de cinco anos e, fundamentalmente, através da obra Woolf pretende consolá-la pelo fato de ser mulher na Inglaterra de seu tempo, na qual mulheres não tinham o direito de herdar patrimônios, pela incompreensão e pelo preconceito descabido que atribuía – e atribui – às mulheres a condição de “segundo gênero”.
O jovem Orlando, graças às metáforas, alusões e simbolismos erigidos por Virginia Woolf, passa por uma transformação física na qual muda de sexo e por uma reafirmação identitária através da qual se cristaliza a ideia da inexistência de uma separação entre homens e mulheres que não seja meramente física.
Ao narrar a transformação de Orlando em uma mulher, a escritora se expressa com ironia propositalmente exagerada e torna possível ao leitor aceitar a transgressão última: a personificação das ideias de verdade, franqueza e honradez que ressaltam uma transformação igualmente verdadeira e permanente, mas que em nada modifica a autêntica essência de Orlando.
O que fica claro e inequivocamente evidenciado é que ser homem equivale a ser mulher, que não há diferenças além de incômodas incompreensões. A nenhum leitor é estranho o renascer feminino de Orlando, como nenhum outro personagem duvida de que se trata da mesma pessoa, em uma aceitação que abandona o terreno da ficção e se apresenta como uma tese incontestável de que as diferenças entre os sexos não modificam a alma das pessoas. Não existe homem ou mulher e a transformação é possível, porque se trata de uma alma imutável, negando a estupidez de considerar que a alma, o espírito, a inteligência de um homem ou de uma mulher apresentam diferenças por detrás de uma identificação física.
As aventuras de Orlando, transformado, se inscrevem no feminino, apoiando-se na fantasia para demonstrar que essas diferenças não são naturais, para denunciar a misoginia do mundo literário, para evocar - mais pela poesia do que pela prosa - um simbolismo corajoso e magnífico, que esvazia as “meias verdades” machistas e feministas e revela uma nova concepção da alma humana.