A ortografia própria, divergente em muitos pontos da gramática oficial, a invenção linguística que abrange o nível semântico (significado), o sintático (combinação) e o fonológico (som), que descobre associações imprevistas entre as palavras e reproduz ruídos da natureza ainda não registrados revelam uma inventividade e uma genialidade que configuram um estilo sem precedentes na literatura brasileira.
(Entrevista concedida a Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em janeiro de 1965 e publicada no livro Diálogo com a América Latina. São Paulo: EPU, 1973.)
Sua mente era particularmente dotada para a linguagem. Aos sete anos começou a ensinar francês e afirmava saber falar ao menos oito idiomas (incluindo o esperanto e o alemão), além de ler em outros quatro (incluindo grego e latim). Estudou a gramática de outros dez diversos idiomas, que vão desde o Tupi até o sânscrito, do japonês ao hebraico, dentre outros.
As línguas foram uma grande paixão, assim como os esportes, as Ciências Naturais (entre os dez e os quatorze anos colecionou insetos e borboletas). Amou a linguagem como se ama a uma pessoa, de forma íntima e subjetiva:
Matriculado na Faculdade de Medicina de Minas Gerais em 1925, começou a enviar alguns contos, publicados na revista O Cruzeiro, que lhe valeram quatro prêmios de cem mil réis cada um por Caçador de Camurças, Chronos Kai Anagke, O mistério Highmore Hill e Makiné, entre 1929 e 1930.
Em 1929 trabalhou no Departamento de Estatística da Secretaria de Finanças de Minas Gerais e no ano seguinte obteve o título de Licenciado em Medicina, sendo escolhido como orador da turma.
Como médico, em 1931, passou a trabalhar em Itaguara e em pouco tempo de esforço e dedicação alcançou o respeito da comunidade, mas no ano posterior voltou a Belo Horizonte para alistar-se como médico voluntario na Força Pública durante a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Em 1933 entrou por concurso nessa corporação, como oficial médico, no 9º Batalhão de Infantaria de Barbacena. Este posto lhe permitiu gozar de mais tempo livre para dedicar-se aos estudos linguísticos:
Sagarana traz doze histórias curtas em sua edição original e nove nas edições seguintes. Algumas superam as cinquenta páginas, compartilhando temas e estilos similares. De fato, o próprio título combina as palavras “saga” (radical de origem germânica que significa história ou canto heroico) e “rana” (palavra de origem indígena que significa algo como “à maneira de” ou “espécie de”).
Esse jogo de palavras, baseado em palavras de naturezas tão diversas, foi o presságio da natureza essencialmente brasileira, dos neologismos e da originalidade que distingue a obra de Guimarães Rosa no tempo em que foi escrita e no conjunto da literatura brasileira.
Quanto às histórias, Sagarana traz o entorno do sertão, que quase se converte em um personagem em si, inclusive porque as histórias mostram um grau notável de metáforas fabulosas e recursos retóricos, como o anacoluto (quebra da estrutura sintática, com continuidade alternativa em sentido diverso, mas complementar) e a silepse (concordância ideológica e não gramatical). Esse método inovador da narração marcou um estilo quase coloquial.
Dez anos após a publicação de Sagarana foi publicado Corpo de Baile, sete novelas que, da mesma forma, descrevem o sertão como uma força da natureza, um pseudo-personagem de contos nos quais os personagens, sertanejos pobres, lutam pela sobrevivência. A obra, evitando qualquer declaração de natureza política, confia apenas na metáfora e na ficção para proporcionar uma narrativa muito mais complexa e pessoal da vida (fictícia) de pessoas reais.
Tão impressionante como Corpo de Baile, mas mais completa e excepcional é Grande Sertão: Veredas, uma das obra mais incríveis já publicadas em qualquer idioma do mundo no século vinte.
Estruturalmente, é uma história extremamente sofisticada, narrada em primeira pessoa através de seiscentas e oito páginas sem capítulos ou, inclusive, com saltos na narração. Em termos linguísticos, levou a língua portuguesa a “lugares onde jamais havia estado”, empregando uma linguagem altamente coloquial e localizada (e, em muitos sentidos, “imaginada”), empregando um dialeto regional que torna o livro difícil, inclusive, para leitores brasileiros.
Este engenho se revela já na primeira palavra da obra: Nonada, posta para ser lida como a versão escrita de alguém, de forma rápida, dizendo Não é nada.
Grande Sertão: Veredas é um trabalho incrível na estrutura e na linguagem, mas também uma história de peso excepcional e notavelmente controvertida. Relata a história de Riobaldo, um velho olhando para o passado, que se dirige diretamente a um ouvinte anônimo/leitor. Repassa o tempo em que lutou com diferentes bandos, as lutas de poder local e as batalhas pela vida no sertão. No processo, surgem amigos muito próximos, como Reinaldo/Diadorim, com quem compartilha um vínculo altamente emocional, de certa forma homoerótico (embora não físico). Converte-se em líder de um bando e, em um ponto decisivo do livro, se dirige a uma encruzilhada para fazer um pacto com o diabo, apesar de estar claro, no restante da obra, que nunca esteve seguro de ter completado o acordo.
Em última instância, a história termina com uma batalha entre o bando de Riobaldo e o de Hermógenes. Ainda que Hermógenes morra ao final, também morre Diadorim e Riobaldo se sente devastado. Nas últimas dez páginas, quando os homens de Riobaldo lavam o corpo de Diadorim para o enterro, o grande segredo é finalmente revelado: Diadorim era uma mulher.
Essa revelação, contudo, não desfaz a relação homoerótica entre Diadorim e Riobaldo presente nas páginas anteriores e o fato de Diadorim ter-se disfarçado como homem para entrar no mundo dos jagunços, aliado à construção da história e de suas impressões durante todo o livro, teve um forte impacto na década de cinquenta.
Genialidade é uma palavra que, apesar de ter-se banalizado, é a única apta a definir o que é Grande Sertão: Veredas e para a habilidade narrativa, linguística e estrutural de Guimarães Rosa, que levou ao extremo a definição de Barthes para a validade do signo literário (que vale mais por seus contornos e suas vizinhanças e que é simultaneamente ícone e símbolo). Pertence invariavelmente a dois ou mais sistemas semióticos superpostos, sendo uma expansão do signo linguístico. No plano do significante, essa expansão se faz pela exploração das possibilidades iconizantes da língua. No plano do significado, pela exploração das associações metafóricas. Através destes recursos, a linguagem literária empresta novos sentidos à representação do mundo.
Nesse sentido, Guimarães Rosa confirmou magistralmente esse pressuposto, pois o grau de literalidade narrativa que perpassa sua obra, bem como a unidade de seu estilo, são capazes de apresentar todos os processos de “iconização, estranhamento, presentificação, singularização e universalização” propostos por Barthes para ressignificar a representação do mundo do leitor.
As descrições são literais, não relacionadas à precisão visual, mas sim às lembranças que o narrador (que também é personagem e o próprio escritor) desenha em relação a lugares e que são permeadas de sentimentos ou, talvez, em sentido contrário, sejam lembranças de sentimentos evocadas por lugares. Ressignificando língua, fala e linguagem, Guimarães Rosa consegue preservar e, ao mesmo tempo, renovar as tradições linguísticas, unificando todas as variantes para esse fim.
A ideia é mais importante do que a forma, justificando o emprego de expressões incomuns, de um estilo com criatividade linguística e riqueza vocabular sem precedentes na literatura brasileira. O resultado é um discurso repleto de construções em que convivem harmoniosamente formas tradicionais e termos recém criados, rompimentos e associações, com uma técnica experimental que transfigura a língua e a literatura.
Guimarães Rosa revelou, através da literatura, que a expressão através da linguagem está além das formulas prontas e dos padrões fixos. A plena manifestação da realidade no que escreve ocorre por meio da observação do conflito que ocorre entre a mensagem linguística explícita, contraposta ao sistema predefinido que até então orientava essa observação. O “desvio” linguístico que apresenta é a expressão máxima da arte literária.
Seu êxito lhe valeu, em 1963, a unanimidade na eleição à Academia Brasileira de Letras um ano após a publicação dos contos de Primeiras Estórias. Não assumiu pessoalmente o cargo até 1967, ano em que Noites do Sertão foi lançado. No discurso de posse na ABL, Guimarães Rosa disse: “A gente morre é para provar que viveu”.
Três dias mais tarde, em 19 de novembro de 1967 Guimarães Rosa faleceu repentinamente, aos cinquenta e nove anos, deixando um trabalho que representa a ficção mais incrível já escrita em língua portuguesa, a mais desafiadora e gratificante da literatura brasileira.
Que a minha mão não trema
ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores
que me deram veneno.
Queimarei o frio
geometrizador da vida
lapidada através de lentes bem polidas
(ah, o horror daquela pedra voando,
tangida pela mão de não sei que demônio,
e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…
Queimarei o detrator,
maníaco e vaidoso,
que quis deter a vida numa câmara lenta,
para a tingir depois numa câmara escura
(ah, o inferno galopando às doidas
nos cavalos sem freios
da vontade cega e sem destino!…)
Queimarei o louco,
ébrio de orgulho,
raivoso de fraqueza,
que destilava haxixe em frascos verdes
na paisagem alpina
(ah, o prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!…)…
E só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos…