No filme O espelho, Aleksei sonha com a mãe lavando os cabelos, a cabeça abaixada, cabelos à frente do rosto, lavados por mãos que não são as suas... a sala que se decompõe, os objetos, como recordações, que se apagam...
Ao fundo, uma voz recita um poema: “não sei para onde fomos levados / diante de nós se abriam, como reflexos [...]”... é a voz de Arseny Tarkovsky.
Seu pai, Aleksandr Tarkovsky, o levava a saraus de poesia aos quais acorriam os mais importantes poetas da época. Todo esse intenso convívio com a literatura e com a poesia o levou a escrever, como se houvesse sido predestinado a tanto: “o destino ia atrás dele, como um louco com uma navalha na mão”.
Aos doze anos, o poeta simbolista Fiodor Sologub disse-lhe que seus poemas eram maus, mas que não perdesse a esperança, porque possivelmente deles alguma coisa pudesse ser salva. Arseny Tarkovsky levou tão a sério essas palavras que nunca se afastou da poesia.
Em 1923, já residindo em Moscou, também o poeta Osip Mandelstam disse, após ouvir seus versos: “já existe um Mandelstam; não é necessário outro”. Anos mais trade, Arseny Tarkovsky corrigiu um de seus poemas, dizendo-lhe: “a rima nesse seu verso está errada”.
No final da década de trinta, convertera-se em um tradutor importante do Turcomenistão, da Geórgia, da Armênia, do árabe e outros países e idiomas asiáticos. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi correspondente de guerra para o jornal do exército soviético, entre 1942 e 1944, recebendo a Ordem da Estrela Vermelha por seu desempenho.
Tarkovsky foi amigo dos escritores de sua geração e dos escritores clássicos de sua época, influências que enriqueceram sua obra. Foi também o último amor de Marina Tsvetáeva, poetisa e tradutora russa. Conheceram-se quando ela regressou do exílio, em 1939. Nesta época, a vida de Marina era difícil; não tinha trabalho e todos haviam se afastado dela. Costumavam passear por Moscou e trocar poemas, mas o romance não durou muito tempo, pois Tarkovsky preferia os amores trágicos e Marina era muito intensa e “filosófica” para ele.
Em 1946 conheceu a poetisa Anna Ajmátova, num dia que costumava lembrar como um dos mais importantes de sua vida. Essa amizade durou até a morte de Ana, uma perda que Tarkovsky teria imensa dificuldade em superar. Em uma resenha da primeira antologia de Tarkovsky, Anna escreveu: “Esta nova voz da poesia russa ecoará no futuro”.
Sobre a poesia de Tarkovsky, efetivamente, muito se pensou e se escreveu. Assim como previra Anna Ajmátova, sua palavra poética era um dom profético, capaz de abranger a memória, o destino e a história.
Seu primeiro livro, Antes da neve, foi publicado em 1962, mesmo ano em que a obra prima de seu filho Andrei foi premiada no Festival de Veneza. Aos cinquenta e cinco anos começou a obter reconhecimento como poeta, pois até então havia se dedicado somente à tradução.
A poesia de Arseny Tarkovsky conserva a tradição estética do Século de Prata, mas traz uma marca pessoal. Seus poemas refletem a percepção do mundo da geração posterior à revolução, sem desvincular-se do passado nem deixar de lado o presente.
Em uma carta ao filho Andrei, escreveu: “somos muito parecidos. Ambos tendemos a nos lançar a qualquer precipício que nos chame, nossa vida se estreita tanto que não somos capazes de ver outra coisa, exceto esse poço ao qual desejamos nos lançar”.
Contudo, sempre deixou claro que sua única segurança encontrava-se na rebelde paixão pela poesia. O homem que tinha dez anos no momento em que ocorreu a Revolução Russa faleceu em 1989, seis meses antes da queda do Muro de Berlim.
Sua poesia criou transfigurações elegantes e cruamente íntimas da realidade da vida cotidiana, complexas, metafísicas, por vezes abrasadoras e melancólicas, e sempre grandiosa em suas redes repletas de imortalidade...
Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.
Vive na casa - e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais.
Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha.
(In “Esculpir o Tempo”)