Aproximar-se do fenômeno educativo a partir de seu pensamento implica atender às possibilidades contrapostas das ferramentas foucaultianas para refletir sobre os discursos e práticas educativas, perpassadas por mecanismos de poder e de submissão.
O discurso acadêmico, via de regra, repete estereótipos em decadência, que encontram discursos de oposição que nem sempre se encaixam nos modos teóricos clássicos, requerendo posturas pós-estruturalistas que permitam sua explicação e sua prática. Esses estereótipos são contestados por Foucault, quando ensina que poder e saber são termos que se relacionam, que podem encontrar-se unidos, mas que mantêm suas diferenças. Na visão tradicional da relação entre poder e saber, o poder aparece como um elemento negativo, coercitivo, restritivo, que age por meio de pressões e enganos e cujos erros são corrigidos ou eliminados pelo saber, que se opõe a ele. Segundo Foucault, “a relação entre poder e saber é uma relação de forças que não deve ser interpretada como negativa, já que o poder não se tem, se exerce”.
Foucault se ocupa, principalmente, da maneira como se exerce o poder: se em alguns momentos da história o poder soberano se encontrava em uma só pessoa, atualmente se entende que governar é estruturar o campo de ação dos demais através das tecnologias normalizadas do eu, do poder disciplinar e invisível. As tecnologias do eu supõem um código de costumes e pautas culturais propostas, sugeridas e impostas aos indivíduos de uma comunidade.
Nesse sentido, saber e poder se implicam mutuamente, já que não há relações de poder sem que se estabeleça o correspondente campo de saberes que o apoiem e justifiquem, de maneira que não há saber que não pressuponha relações de poder:
Naquilo que Foucault denomina “sociedade disciplinar moderna” se incluem as ciências humanas como discursos que são aceitos como verdadeiros mediante a razão científica, que se encarrega de identificar “o verdadeiro” para um determinado grupo, autointitulado como de “intelectuais” ou “cientistas”.
Assim, saber e poder se conectam e se produzem mediante ações de governo: o poder é mais uma questão de governo que de confronto entre dois adversários ou de relação entre um e outro. A “racionalidade política do governo” gera autodisciplina, como uma arte do governo baseada nas tecnologias do eu. O poder apenas existe na ação e se atualiza no corpo, nas ações e na conduta.
Para Foucault, o poder e o saber se unem no discurso: o discurso transmite e reforça o poder, mas também pode opor-se a ele, já que, segundo as circunstâncias, um mesmo discurso pode desempenhar múltiplas relações com o poder. São como dois blocos táticos que operam no campo das relações de forças, com diferentes estratégias, mantendo uma relação discursiva e nunca estável e, por isso, “tudo é perigoso”.
Não existem práticas ou discursos intrinsecamente libertadores: ou são ou não são libertadores segundo o contexto. As tecnologias do eu e o poder-saber operam no micro nível das práticas concretas. O poder surge a partir de práticas específicas em campos locais de ação. É relacional e não existe se não dá se não existem focos de oposição. Como observa Foucault, esse poder invade todos os aspectos da vida e as relações: tanto os comportamentos e normas éticas como a determinação e formas sociais ou modos de vida em todos os seus níveis.
O exercício do poder, por seu turno, exige o estabelecimento de regras que disciplinem a vida e, ao mesmo tempo, garantam a preponderância da verdade do discurso ditado pelos que detêm o poder. Para Foucault, o que importa é reconhecer onde reside a verdade na vontade coletiva, reconhecendo que essa verdade é um mito que existe apenas no poder e em seu exercício, sendo necessário evidenciar que o que produz a verdade é uma concessão política:
a) a verdade se embasa na forma do discurso científico e nas instituições que produzem esse discurso;
b) a verdade é constantemente estimulada de acordo com fatores econômicos e políticos, ou seja, tanto para a produção econômica como para legitimação do poder político;
c) a verdade é imensamente difundida e consumida através do sistema educacional, dos meios informativos, para o corpo social;
d) a produção e a transmissão da verdade são controladas, fundamentalmente, por aparelhos políticos ou econômicos institucionalizados em universidades, forças armadas, imprensa, mídia;
e) a verdade é constantemente debatida e gera confrontos sociais, através de lutas ideológicas.
Em relação a esses conflitos, Foucault observa que os intelectuais combatem pela verdade ou em torno de uma verdade que não a institucionalizada pelo poder dominante, contra regras que distinguem o verdadeiro e o falso e justificam o exercício de um poder político que estatui uma verdade econômico-política negativa:
A "verdade" está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. "Regime" da verdade.
Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. E ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos países socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conheço).
O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.
O poder, nesse sentido, é exercido em nome dessa “verdade” e, nesse sentido, as considerações de Foucault são fundamentais para que se compreenda a prática efetiva de poder e controle nas sociedades moderna e contemporânea, sobretudo pela abordagem do tema do panóptico de Bentham em relação ao poder na corporeidade, ou seja, na abordagem que converte o sujeito em corpo e alma dócil e produtiva – fenômeno central caracterizado pelos meios através dos quais as sociedades capitalistas geram uma produção de sujeitos submetidos, que Foucault denomina ‘panoptismo’ ou ‘sociedade disciplinária’”.
Esse sistema geral de normatização, disciplina e normalização assume formas, contornos e a figura que lhe dá estruturação no observar, no dizer, no atuar: a sociedade disciplinaria cuja arquitetura privilegiada reside no panóptico de Bentham (hoje vivemos uma estrutura social na qual reina o panoptismo).
Esta sociedade disciplinária emerge como produto do desenvolvimento do capitalismo industrial, onde as relações de poder se fundam numa série de dispositivos que pretendem, por meio de uma subjetividade “domesticada” e do exercício contínuo da vigilância, do controle e da correção, “recompor os sujeitos em corpos submetidos e produtivos”.
Esse modelo gerou uma rede institucional de apropriação e retenção, que é conformada por múltiplas instituições, por meio das quais os sujeitos são redistribuídos, transformados, normalizados. Nesse sentido, o tratamento do conceito de poder dado por Foucault dá conta da realidade do sujeito que se encontra em um aparato disciplinador exaustivo, atento a todas as ações e atitudes do indivíduo.
Foucault afirma que durante muitos séculos, a humanidade desenvolveu a relação castigo/corpo, ou seja, o poder como o exercício da disciplina, que transcende aos indivíduos, através da vigilância hierarquizada. Essa vigilância, além de sua organização e dos fins a que persegue, se estabelece também como um poder múltiplo, automático e anônimo uma vez que, “se é certo que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é o de um sistema de relações de cima para baixo, mas também, até certo ponto, de baixo para cima, e lateralmente”.
Isso significa que o exercício do controle relativamente à vigilância de uns sobre outros, independentemente da posição hierárquica de cada um, é o de “vigilantes constantemente vigiados”. O exercício da vigilância parte do princípio que a todo direito devem corresponder os meios para que se realizem, do contrário seria inútil proclamar-se sua existência. Toda a realização de direito envolve condições que são essenciais à sua prática e as instituições, reduzidas aos seus justos limites, representam um direito da sociedade que, para realizar-se, necessita de instalações adequadas, disciplina rígida, regras morais e ordem perfeita.
Como nos pesadelos distópicos de Orwell, na ampla rede da vida social, no modelo do panóptico de Bentham, nada escapa ao olho interessado. Como demonstram análises como a de Bordieu, a escola é um exemplo claro das instituições e seu papel fundamental de custódia, como centros de concentração que fixam seu olhar nos indivíduos durante uma parte significativa do conjunto de horas de sua vida, fazendo com que se integrem no interior de um dispositivo único três procedimentos, como quer Foucault: o ensino propriamente dito, a aquisição de saberes pelo exercício da atividade pedagógica e, finalmente, uma observação reciproca e hierarquizada.
Essa observação reciproca e hierarquizada, essa vigilância discreta, contínua e global que repousa sobre sujeitos identificados e concretos, portanto, se estende a diversas instituições, pela importância das novas dinâmicas do poder. Tais dinâmicas se assentam em instituições de longa tradição, como a escola, cuja história Foucault percorre para descrever as sociedades modernas.
O ideal da cela do qual fala Foucault é o da jaula em que o indivíduo possa ser vigiado a todo momento. Com o tempo, pode esquecer que vive em uma jaula e descuidar da presença do poder ao seu redor. Quando fala de sistemas disciplinares, Foucault se refere a esse pequeno, aparentemente modesto, mecanismo que penaliza e vigia as partículas mais ínfimas das condutas dos indivíduos: “um espaço que as leis deixam vazio; qualificam e reprimem um conjunto de condutas [cuja relativa indiferença se assemelha aos grandes sistemas de castigo]”.
O castigo é estendido como elemento corretivo, como instrumento de reeducação, no qual o efeito de mudança tem um propósito que Foucault sintetiza em uma noção de enquadrar, de endereçar condutas desviadas. Tomando como acessório o arrependimento ou a expiação dos erros e faltas, “castigar é exercitar”. O exercício do castigo - prática de disciplina - utiliza um duplo sistema de gratificação e sanção, através do qual se pode quantificar (através da penalidade se tem conhecimento dos indivíduos, separados, divisíveis em sequências, em espaços, em registros, em casos) e qualificar (sempre a qualificação de bom ou mau, inteligente ou lento, sadio ou doente, moral ou patológico, etc.). Esta é a dicotomia sobre a qual se constrói a concepção de mundo dos indivíduos.
Classificar os indivíduos e distribuí-los por aspectos (quantificação e qualificação) apresenta uma dupla função: “assinalar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as atitudes, mas também castigar e recompensar”. A referência será a classificação refletida nos informes sobre “sua conduta universalmente reconhecida”.
O universal assinala o natural, o artifício definitivo, a manobra de obstrução do que não deixa de ser um construto social. A inteligência é usada como medida objetiva e neutra, padrão puro e não contaminado e ao penalizar se faz com que todos os indivíduos se assemelhem, ajam da mesma forma, se tornem previsíveis, estimáveis em suas reações e respostas, homogeneizados. A padronização, a homogeneidade é o desvanecimento das diferenças entre os indivíduos.
O uso da técnica da hierarquia, da normalização e da sanção é complementado pela observação, que opera prolongando uma justiça que se pretende objetiva. Ao mesmo tempo, também proporciona a análise da relação existente entre o poder e o saber, convertendo-se em um instrumento que torna visível o “desvio”, que qualifica, classifica, castiga, compara, mede e sanciona.
Se tudo isso é, ao mesmo tempo, ”natural” e perigoso, é preciso considerar que também os discursos liberais e emancipadores no campo do saber carecem de garantias quanto aos seus efeitos: surgem como medidas para equilibrar ideias e métodos antiquados - que são dominantes, mas derivam para uma busca de explicações universais e baseadas na ideia de progresso – e muitas vezes já nascem condenados ao fracasso porque, pretendendo erigir discursos emancipadores, na essência reproduzem os efeitos dos discursos dominantes que criticam.
Nessa dinâmica, os escritos de Foucault demonstra, de forma extraordinária, como a falácia humanista nos faz crer que somos mais livres quanto mais submetidos sejamos.
A escola aprofunda sua vocação de instrumento privilegiado dessa falácia humanista sutil e perversa: muitos dos novos discursos emancipadores convencem que não existe submissão enquanto seduzem para submeter, principalmente quando abordam o aluno insubmisso como uma “criança em perigo” à qual é preciso proteger, educar conforme determinados critérios pedagógicos e psicológicos.
Ainda que se questione quem e sob que critérios psicopedagógicos quem ou o que tem legitimidade para “proteger” os que “não se enquadram”, a moderna “colonização” da educação pela psicopedagogia garante a implantação social da psicologia através da escola, ao mesmo tempo em que reafirma a falácia humanista definida por Foucault.
A psicologia da educação submete humanizando o controle e a dominação por parte do poder. Não reprime, mas convence e seduz. Não impõe autoritariamente, mas motiva o aluno para que se submeta voluntariamente. Enquanto se reinventam argumentos que derivam nesse mesmo sentido, a “normalidade” oferecida pelo saber-poder continua a se especializar na formação de professores, da qual a crítica foucaultiana permanece ausente.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2015.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.