Suas crônicas, publicadas entre 1971 e 1972, transformaram o poeta em um porta-voz da resistência cultural à ditadura militar. Nelas é transparente sua tarefa de difusor cultural e também a lenta e conflitante contradição entre corpo e vontade construtiva.
Quando protagonizou o filme de Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”, em 1971, forjou sua figura e sua biografia pública – que se alimenta do posterior suicídio. Em torno dessa imagem se inscreveu em uma série de leituras, que produziram sentidos diferentes e complementares cujo resultado articula sentidos e temporalidades diferenciadas.
Compreender o vampiro-Torquato implica repensar as estratégias de resistência cultural diante da repressão, adicionando a pluralidade de sentidos e tempos que emanam dessa figura. Sem desconhecer o endurecimento da censura, a persecução, o encarceramento e o exílio, a condição noturna/marginal do artista foi vivida de um modo muito mais diverso, que excedia a mera condição de vítima.
As razões desse distanciamento podem ter sido diversas, mas ele se deve, em parte, à leitura dos poetas concretistas, sendo importante para as figurações corporais que podem ser percebidas em seus textos, nos quais não se percebe um corpo livre ou apenas um corpo livre, mas um corpo ambíguo, com marcas de prazer e de dor, de plenitude e de autodestruição.
Sua figura pública, antes e após seu suicídio, ocorrido em 1973, encarnou essa ambiguidade e se transformou em uma espécie de documento que voltou a articular corpo e concretismo. Em 1971 havia protagonizado “Nosferatu no Brasil”. Com o suicídio produziu-se uma nova leitura do filme, especialmente das imagens de Torquato Neto caracterizado como Nosferatu, o vampiro, o monstro, um corpo teratológico em sua liberdade, em sua periculosidade e em sua tragédia.
Torquato Neto procurou apropriar-se e produzir uma série de deslocamentos de alguns conceitos centrais do concretismo como, por exemplo, invenção, inventores, mestres, diluidores e informações. Esta apropriação foi realizada através da criação de um protocolo corporal ambivalente, entre o luminoso e o escuro, constituído por deslocamentos, rupturas, ações e ocupações, produzindo-se em função de novas condições políticas e culturais: o endurecimento repressivo do início dos anos setenta e a pobreza cultural decorrente do exílio, da migração e da censura de muitos protagonistas culturais dessa época.
As crônicas de Torquato Neto foram compiladas em “Os últimos dias de Paupéria”, livro póstumo organizado por Waly Salomão e Ana Duarte, editado inicialmente em 1973, demonstram claramente essa apropriação na relação que estabelecem com alguns dos textos de homenagem que constam na obra.
Em suas páginas iniciais, o livro traz poesias, evocações e fotografias de Torquato Neto com os amigos mencionados por ele nas crônicas, dentre os quais Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que compuseram com ele, desde meados dos anos cinquenta até meados dos anos sessenta, o grupo que se destacou pelo rigor formal em busca de uma poesia que, tendo como objetivo o fim do verso, apagasse todo rastro expressivo.
A esse respeito Aguilar (2015, p. 200) afirmou: “além de ser uma unidade rítmico-estrutural, o verso também implica um elemento mimético sobre uma ordem maior, definida de diversas formas, segundo cada poética”. Assim, pode ser equivalente da natureza ou da ideia ou, ainda, de algum outro tipo de instância transcendente.
Esse questionamento se tornou mais claro a partir de 1975 e dele participaram alguns dos poetas chamados “marginais”, intelectuais e escritores que buscaram uma mudança de sensibilidade em relação às vanguardas dos anos sessenta.
“Geleia Real” foi o título genérico que Torquato Neto escolheu para suas crônicas, recuperando uma retórica do confronto mais próxima à violência do que à imersão na “geleia” da época tropicalista. Os “diluidores”, os “outros” já não estavam entre os que “diluíam” os princípios da vanguarda concreta, mas no cinema alegórico e nacionalista da segunda geração do Cinema Novo (homogêneo, linear e nacionalista), na quietude e no conservadorismo de muitos artistas, na expansão e no crescente domínio da rede Globo, em um estado social que admitia e tolerava a ditadura. Dessa forma, mais do que uma divisão entre o que era vanguarda e o que não era, a “geleia geral” da qual era preciso se distanciar era um estado do campo cultural e social brasileiro dos anos setenta, submetido à censura, à extorsão e à cooptação.
Na emergência, em diversos discursos, textos em prosa e poesia, ensaios e artigos, de uma série de figurações corporais que se investiram de um poder transgressor, que ocorreu a partir do final dos anos cinquenta já se verificava essa tendência. Contudo, o poder representado pela repressão remeteu a representações diversas: corpos intensos, sensoriais, sensuais, em movimento, vampíricos ou abjetos, em um enfrentamento aos corpos mártires, revolucionários, máquinas.
No plano usual, essas figurações, anteriormente ausentes devido à hegemonia de uma produção estética concreto-abstracionista, interviram criticamente nos debates estéticos e políticos do modernismo racionalista, do modernismo revolucionário e, por fim,, da modernização autoritária.
Esses debates se concentraram em diferentes aspectos do modernismo e da modernidade brasileira: o otimismo sobre o futuro da técnica, a conveniência da revolução e, finalmente, o questionamento das heranças das vanguardas, acusadas de haverem compartilhado a ideologia do progresso, que desembocou na fase mais obscura da repressão militar dos anos setenta.
A partir de posições marginais, pontualmente como crítica da tradição hegemônica do modernismo racionalista, emergiram as figurações corporais para reler e reinterpretar essa tradição, enfrentando a necessidade de constituir outros imaginários políticos ou de imaginar novas formas de resistência durante o período da modernização autoritária.
Examinando a apropriação que Torquato Neto realiza sobre os conceitos primordiais do concretismo: invenção, mestres, diluidores, informação, percebe-se que teve o dom de deslocar o corpo entre o claro e o escuro, a matéria real, que ativa as condições de produção e torna visíveis as características mais obscuras da sociedade dos anos setenta.
Por outro lado, no plano dos efeitos, a aparição do corpo produziu uma tradição revista e ampliada das vanguardas, principalmente através das sucessivas releituras e apropriações da poesia concreta feitas por Torquato Neto, que representam um relato modernista-concreto menos excludente em suas opções, mais aberto em seus predicados, pulsional e carente de qualquer teleologia.
Com Torquato, a arte brasileira avançou em uma concepção cultural que vislumbrou uma possibilidade na ambígua garantia que aquela época oferecia aos artistas, assediados pelas circunstâncias de endurecimento político. Por isso, à perda da consciência coletiva e aos aparatos do poder repressor opôs o vampirismo, fixado no corpo e na margem.
As crônicas de Torquato Neto direcionam a atenção para a proposição da figuração de um corpo em movimento, no qual convivesse tanto um corpo pleno, luminoso, como um corpo escuro e fragmentado. Este corpo em movimento revelava pontos de fuga e, ao mesmo tempo, a possibilidade de algo que o aniquilasse. Nessa dualidade se resumiam as resistências diante dos anos mais duros da ditadura e processos de deslocamento de sentido, apropriação e releitura das tradições estéticas dominantes nos anos cinquenta e sessenta.
O corpo em movimento carregava sobre si tradições que até então eram vistas como antagônicas e o aleatório se unia à vontade construtiva, às pulsões inconscientes e ao planejamento consciente.
O surgimento, nesse contexto da figura do vampiro, proveniente da literatura e do cinema, além de representar a imagem do artista durante os anos setenta, recebia leituras contraditórias, mas que funcionavam de forma complementar. O vampiro resolvia o corpo ambíguo, que surgia nas crônicas e se transformava em um signo coletivo.
O Nosferatu, NosTorquato comunitário trazia em si as potencialidades de um imaginário corporal claro e escuro ao mesmo tempo, perigoso para os outros e para si mesmo, trágico e grotesco, erótico e frágil. O vampiro-artista representado por Torquato Neto podia ser vítima ou algoz e seu inimigo era sinistro, desvanecendo-se entre a indústria cultural que se consolidava e a censura e a repressão perpetradas pela ditadura militar.
O imaginário de um corpo transgressor, bem como determinadas marcas contraculturais já apareciam em textos de Jorge Mautner e Roberto Piva e continuaram surgindo nos textos de Torquato Neto. Essa continuidade tornou visível o que havia permanecido “nas sombras” durante os anos sessenta e restituir certa densidade temporal aos anos setenta, período no qual se pensava mais como reação à época anterior do que como continuidade.
Indo além, Torquato Neto consubstancia uma comunidade impossível que se encerra com o “todo mundo lá” da crônica “Nas quebradas da Noite” e se reforça como reação cultural coletiva contra a repressão. A partir da instauração deste coletivo, o vampiro deixa de ser a imagem (unicamente) do isolamento: é uma ocorrência marginal que age por contágio. Na medida em que o contágio não estabelece filiações, ou seja, descendência, mas sim transcendência, a figura do vampiro se constitui em uma figura que vale para todos e entre todos os casos de uma mesma classe.
O deslocamento do Nosferatu ao NosTorquato, que pode ser assumido por qualquer um, torna visível o caráter exemplar de Torquato Neto e também a possibilidade de substituição, pois o ser pode ser substituído. É através das noções de singularidade e de possibilidade de substituição que se funda uma comunidade, um espaço a partir do qual já não se pretende lutar contra o Estado e que, precisamente por isso, pode ser objeto de uma violência inusitada por parte desse Estado.
É da recepção dessa violência que fala Haroldo de Campos em seu poema e que Hélio Oiticica se refere à impossibilidade de permanecer neutro diante dela. Essa imagem é ambivalente como a gilete e propõe como estratégia básica a apropriação crítica de tradições, isto é, dissolver o presente no passado, num jogo duplo com e contra os valores dominantes.
Precisamente nesse sentido deve ser compreendido o NosTorquato, a obra de Torquato Neto e todos os significados vivos de suas palavras e ações, a força de uma personalidade que atribuiu à cultura brasileira dos anos setenta uma continuidade capaz de realizar uma revisão das vanguardas, ressignificar as figurações de um corpo em movimento, livre apesar da repressão, contestador e inventivo.
Por esse motivo, constituiu uma pluralidade que desconstruiu e reconstruiu todo o relato sobre as vanguardas e sobre a literatura marginal dos anos setenta e permanece viva, como exemplo e motivação - tão necessária aos anos sombrios que hoje vivemos.