Autor de uma obra literária de cunho regionalista, clássica dentro do gênero, notabilizou-se pela publicação, em 1912, de Contos Gauchescos, transformando-se em um dos maiores escritores da literatura do Rio Grande do Sul e um dos grandes escritores da literatura brasileira.
O que a obra de Simões Lopes Neto encerra, portanto, é uma substancial riqueza de experiências, mergulhadas em uma linguagem peculiar, conformada ao seu propósito e adequadamente harmoniosa.
Comunica, assim, a cosmovisão do autor baseada em suas próprias vivências – ou melhor, convivências – que são compartilhadas sempre na primeira pessoa do singular, com a presença de um narrador que é personagem, invocando testemunhas.
Indo além, pode-se afirmar que na narrativa de Simões Lopes Neto um ser humano se comunica com outro ser humano e, especialmente, com a sua alma, com uma relação perfeita entre a profundidade da mensagem, a simplicidade da forma, a necessidade de comunicação entre os homens e o desejo do autor de deixar seu testemunho através da obra literária.
Para que seja possível captar integralmente a cosmovisão gauchesca do autor, é preciso destacar o valor que Simões Lopes Neto atribui à palavra essencialmente emitida pela boca de um genuíno gaúcho rio-grandense, peão de estância e homem experiente – tal é o caso de Blau Nunes. Através dele é recriado um mundo ingênuo e perspicaz, no qual ressaltam a lealdade, a alegria impulsiva e a tristeza sombria, evocados no texto com memória imaginativa, no pitoresco e expressivo dialeto sul-rio-grandense.
O desejo de Blau Nunes é transmitir ao jovem Patrício, paradigma do que se inicia na vida adulta, toda a sua experiência de homem comum, bem intencionado e apaixonado pela vida campeira. Está convencido de que sua condição de gaúcho é um presente divino e quer compartilhá-lo:
(Contos Gauchescos e Lendas do Sul, L&PM, 2012, p.16)
Blau Nunes é o velho sábio, digno, experiente, que tem muito a dizer e deve ser ouvido. Os contos reproduzem a oralidade própria do homem da campanha, cuja vida sempre transcorreu ao ar livre, admirador e conhecedor do que a natureza ensina. Comunica-se da forma espontânea e cordial que costuma permear as conversas entre amigos.
As marcas dessa oralidade, na palavra do narrador e protagonista, são muitas. Há, entre elas, ditos populares, interjeições enfáticas, sinais de pontuação não convencionais, o uso abundante de pontos suspensivos (por vezes três linhas de pontos seguidas separando os parágrafos) e o apelo constante ao interlocutor:
“Mas isso é outra cousa; vamos ao caso”. (p. 19)
“A la fresca!..” (p. 19)
“Ah! Mulheres!...” (p. 32)
“Pois, amigo, se lhe conto...” (p. 123)
“Que foi?
Ah! quebrou-se a ponta do lápis?
Amanhã vancê escreve o resto: olhe que dá para encher um par de tarcas!...” (p.134)
As expressões dos personagens, ainda que não possam ser chamada expressamente de refrãos ou de sentenças, denotam valores morais. No conto Trezentas onças, o protagonista, que perdeu o dinheiro do patrão, em sua honradez, se desespera e diz que preferiria morrer antes de haver perdido esse dinheiro, que não era seu. Chega a sacar o revólver da cintura para tirar sua própria vida, mas, através de uma expressão enfática, que reafirma o caráter oral do texto - “Ah, patrício! Deus existe...” (p. 23) – desiste da ideia por crer que sua vida não lhe pertence, mas a Deus, pela força que lhe transmite a natureza, que admira, respeita, na qual encontra refúgio, e por sua própria responsabilidade como chefe de família.
Também manifesta um olhar benevolente para com os animais, seus companheiros:
O personagem personifica o gaúcho comum, despojado da mitificação usual, real, produto da integração com seu meio, cuja forma de viver é muito clara:
Alguns aprendem à sua custa, quase sempre já tarde pra um proveito melhor. Eu sou desses.
Pra não suceder assim a vancê, eu vou ensinar-lhe o que os doutores nunca hão de ensinar-lhe por mais que queimem as pestanas deletreando nos seus livrões”. (p. 133)
2. “Fala ao teu cavalo como se fosse a gente”. (p.133)
3. “Se correres eguada xucra, grita; mas com os homens, apresilha a língua. (p.134)
4. “Quando dois brincam de mão, o diabo cospe vermelho...” (p.134)
Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...” (p. 21-22)
2. “Umas coplas que eram assim… e me lembro, porque quem as botou – para uma outra – foi mesmo este seu criado Matias!...
Quem canta pra tu ouvires
Devia morrer cantando...
Pois quando daqui saíres,
Do cantor vais te olvidando;
E, pode ser que morrendo,
Dele então tu te lembrasses:
Se visses outro defunto,
Ou se outra vez tu dançasses...
Minha voz no teu ouvido,
Soluçaria de dor,
Não por deixar a vid…” (p. 39)
É uma obra clássica do gênero do regionalismo brasileiro, demarcada por um plano regional, mas elevada a um plano universal, porque a exploração que faz dos conflitos vivenciados pelo gaúcho se inscreve em um paradigma que é experimentado por todos os homens, em todos os tempos e lugares.
Ao mesmo tempo em que resgata a cultura gaúcha e a linguagem regionalista típica, escrita por um homem que, apesar desse conhecimento, sempre possuiu hábitos culturais urbanos, a obra propõe à literatura brasileira outra ótica do regionalismo.
Construído a partir de uma paisagem, de uma linguagem e de um personagem que contribuem para revelar ao Brasil uma forma de vida, uma cultura e um mundo praticamente desconhecidos de muitos brasileiros, Contos Gauchescos construiu, revelou e consagrou o regionalismo gaúcho.