Recordá-la faz com que renasça a memória de uma voz que era emoção pura, que transmitia toda a crueza da indignidade, da perda, da ruína, do sofrimento e de tudo o que, enfim, foi a sua vida.
Conhecer sua biografia é enfrentar um desafio emocional profundo, uma viagem aos abismos da natureza humana, uma lembrança de quão sórdida pode ser a existência por detrás das luzes e dos aplausos.
Com quatorze anos foi viver com a mãe, no Harlem, e passou a prostituir-se para sobreviver, até que foi presa. Nesse período aproximou-se da música e, posteriormente, começou a cantar junto ao saxofonista Kenneth Hollan.
Envolvida pelos temas de Louis Armstrong e de Bessie Smith, aprendeu a dar nova interpretação ao que cantava. No início dos anos trinta já era conhecida nos clubes de Nova Iorque.
Em uma de suas primeiras interpretações emudeceu a plateia ao cantar Travellin’ all alone, fato que mais tarde recordaria dizendo que, naquele instante, se houvesse caído um alfinete, teria soado como uma bomba.
Um homem foi essencial à sua carreira: o legendário John Hammond, caça-talentos da Columbia, que a ouviu cantar em 1933 e imediatamente a colocou junto a Benny Goodman, a grande estrela do swing de Chicago, para gravar pela primeira vez: Your mother's son in law.
Entre 1935 e 1942 realizou mais de cem gravações nas quais cada canção trazia uma interpretação que nenhum outro artista era capaz de reproduzir. Seu timbre era especial e a emoção com que cantava era, ao mesmo tempo, simples e profunda.
Um artista negro não tinha condições, na época, de viver da música. A venda de discos se reduzia a poucas pessoas e as apresentações aconteciam em clubes pequenos. Além disso, boa parte dos ganhos de Billie era entregue aos seus companheiros ou aos traficantes.
Sua época dourada inclui canções como My Last Affair (This Is), My Man, I Can’t Get Started, Night and Day, You Got To My Head e, sobretudo, Strange Fruit, canção que foi o marco divisório da sua carreira, que canta a história do linchamento de um negro que lutava contra o racismo imperante nos Estados Unidos e se converteu em um lema do movimento pelos direitos civis.
Anos mais tarde, Billie incluiu nos contratos uma cláusula reservando-se o direito de interpretar o tema em todos os seus shows. Strange Fruit foi considerada pela revista Time, em 1999, a melhor canção do século XX.
Em 1941 casou-se com o trompetista Jimmy Monroe e, ao mesmo tempo, manteve um caso com Joe Guy. Nenhuma das duas relações foi adiante e, em 1952, casou-se com Louis McKay que, curiosamente, embora por estranhas convicções religiosas tenha tentado livrá-la das drogas, também foi responsável pelas cicatrizes que Billie exibia no rosto e por sua ruína definitiva.
Seus últimos anos de carreira foram de várias iniciativas musicais, como a gravação do programa The sound of jazz para a CBS, em 1957, com interpretações memoráveis de temas como Fine and Mellow, I love you Porgy e God Bless the Child, junto a Webster Young, Gerry Mulligan e Coleman Hawkins.
Os anos seguintes foram ainda mais lamentáveis em sua vida pessoal. Por sua condição de mulher, negra e viciada em drogas e álcool, converteu-se no alvo principal do Departamento Federal de Narcóticos, passando vários meses na prisão e suas ausências coincidiram com a ação de inúmeros aproveitadores que a deixaram na miséria.
Ao falecer, em 17 de julho de 1959, vitimada por uma cirrose hepática, Lady Day reuniu três mil pessoas em seu funeral, mas em sua conta bancária tinha apenas um dólar.
Em sua autobiografia, deixou um aviso: "Você estar vestida de cetim, com gardênias no cabelo, e não ver uma única cana de açúcar por vários quilômetros, mas ainda assim vai continuar a trabalhar em uma plantação".
No vídeo abaixo, o documentário Lady Day, The many faces of Billie Holiday, uma retrospectiva de sua carreira que foi gravado no ano de 1990, co-produzido por Toby Byron/ Multiprises e dirigido por Matthew Seig.