Ao seu primeiro livro, Poemas, de 1930, seguiram-se História do Brasil, de 1932, Tempo e Eternidade, de 1935, As Metamorfoses, de 1941, Sonetos Brancos, escrito entre 1946 e 1948, Parábola, datado de 1946- 1952 e Siciliana, entre 1954 e 1955. Acerca das obras A poesia em pânico, de 1938, O visionário, de 1941, e Mundo enigma, de 1945, Manuel Bandeira observou que o poeta “tendia para uma visão dialética que exprime a síntese dos contrários, síntese de transcendência religiosa e do mundo das formas em que se localiza o poeta como homem”.
Em seguida escreveu Poesia Liberdade, em 1947; Janela do Caos, em 1949, ilustrado por Francis Picabia; Tempo espanhol, em 1959, e Convergência, em 1970, além de alguns livros de prosa, como A idade do serrote, de 1968 e Poliedro, de 1972.
Entre estes e outros livros escritos em vida e outros inéditos, a criação de Murilo Mendes é absolutamente fecunda e inovadora.
De acordo com Denira Rozário, Murilo “escrevia seus versos com toda a autenticidade, de acordo com suas disposições mais íntimas”. Seus poemas, muitas vezes, são inusitados, semelhantes ao próprio autor.
Gilberto Mendonça Teles disse que o poeta incorporou o compasso e a evolução da poesia vanguardista italiana e europeia.
Poeta múltiplo, que fazia convergir poética e moralmente elementos completamente contraditórios, como fez com o surrealismo mais fino e com o sentimento católico, em Murilo Mendes, o mistério do mundo é claro em profundidade e católico na superfície.
Claudio Willer reafirma essa profundidade ao dizer que o poeta, “ao abraçar o catolicismo, [por influência de Ismael Nery], foi mais fundo, até a religiosidade primordial, pagã, inseparável de seu apelo ao telúrico”.
Encontra a poesia em tudo: a visão da passagem do cometa Halley, em 1910 “o desperta para a poesia”; decide ser poeta quando foge da escola para ver “Nijinsky dançando no arco-íris”; Mozart surge, muitas vezes, em seu quarto, “vestido com um casaco azul” e, em 1921, quando os alemães tomaram Salzburg, enviou um telegrama ao próprio Hitler, escrevendo: “Em nome Mozart protesto contra invasão militar Salzburgo. Murilo Mendes".
Murilo Mendes é múltiplo, sobretudo, porque como ele próprio diz, “o poeta-oceano não entende de limites” e sua poesia, mais do que qualquer outra definição que nela caiba, é poesia-liberdade.
Ao “microdefinir-se” Murilo Mendes sentenciou:
Sinto-me compelido ao trabalho literário:
Pelo desejo de suprir lacunas da vida real; pela minha teimosia em rejeitar as “avances” da morte (tolice: como se ela usasse o verbo adiar); pela falta de tempo e de ideogramas chineses; pela minha aversão à tirania - manifesta ou súbdola -, à guerra, maior ou menor; pelo meu congênito amor à liberdade, que se exprime justamente no trabalho literário; pelo meu não-reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade; pelo meu dom de assimilar e fundir elementos díspares; pela certeza de que jamais serei guerrilheiro urbano, muito menos rural, embora gostasse de derrubar uns dez ou quinze governos dos quais omitirei os nomes: receio que outros governos excluídos da minha lista negra julguem que os admiro, coisa absurda; porque sou traumatizado pela precipitação diária dos fatos internacionais; por ter visto Nijinski dançar; pelo meu apoio ao ecumenismo, e não somente o religioso; por manejar uma caneta que, desacompanhando minha ideia, não consegue viajar à velocidade de 1.000 quilômetros horários; pelo meu ódio físico-cerebral ao fascismo, ao nazismo e suas ramificações; pela tendência a preferir Aliocha a lvan e Dimitri Karamazov; porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador; porque não separo Apolo de Dionísio; por haver começado no início da adolescência a leitura de Cesário Verde, Racine, Baudelaire; por julgar os textos tão importantes como os testículos; por sofrer diante da enorme confusão do mundo atual, que torna Kafka um satélite da Condessa de Ségur; pela minha tristeza em não poder conversar esquimaus e mongóis; pela notícias de que Deus, diante da burrice e crueldade soltas, demitiu-se do cargo de administrador dos negócios do homem; pelo charme operante das cabeleirosas e das pernilongas, das sexy a jato e das menos sexy a tílburi; pela fúria galopante dos quadros e colagens de Max Ernst; pela decisão de Casimir Malevich, ao pintar um quadrado branco em campo branco; pela vizinhança através dos séculos, malgrado as sucessivas técnicas e rupturas estilísticas, de Schönberg e Palestrina; pelo meu amor platônico às matemáticas; pelo dançado destino e as incríveis distrações de Saudade; pelo meu não vertical às propostas de determinados apoetas impostas no sentido de liquidação da poesia; pelas minhas remotas e atuais viagens ao cinematógrafo, palavra do tempo da infância; porque temo o dilúvio de excrementos, a bomba atômica, a desagregação das galáxias, a explosão da vesícula divina, o julgamento universal; porque através do lirismo propendo à geometria.
(B)
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria – desde 900 bilhões de anos? –, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. Na gruta de Altamira disse: eu estava aqui na época em que gravaram estes bichos. As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.
(C)
De substrato pagão; covarde; oscilante; incapaz de habitar o faminto, o leproso, o pária; aterrorizado ante a cruz trilíngue — máximo objeto realista - oclusa ao olho dos doutores, travestida pela montagem teatral de Roma barroca-poliédrica; obsedado pelo Alfa e o Ômega; bêbado de literatura, religião, artes, música, mitos; imbêbado de política, economia, tecnologia; expulso dos teoremas; tachado de analfabeto pelo físico nuclear e pela história, dama agitadíssima; consciente da força agressiva do mundo moderno, da espantosa ambiguidade da natureza humana, indecisa entre adorar a matéria ou destruí-la; dinâmico na inércia, inerte no dinamismo sou.
(D)
Manipulo sempre, além do verbo comprar, o verbo perder; dialogo com a minha própria negação; temo alternativamente a cadeira elétrica e os fogos de bengala; atiço o conflito entre inspiração e estrutura; vejo-me empurrado pelo motor das musas (terrestres) inquietantes; hóspede dos enigmas; protegido pelo sense of humour, meu anjo-da-guarda; espero em vão o escafandrista ou o cosmonauta hors série capazes de manifestar os tesouros ocultos da poesia, máquina construtora-destruidora; sei que Don Giovanni e o convidado de pedra se completam; observo a novidade das coisas debaixo do sol.
(E)
Tenho raiva de Aristóteles, ando à roda de Platão. Sou reconhecido a Jó, aos quatro evangelistas, a São Paulo, a Heráclito de Éfeso, Lao-Tsé, Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Camões, Pascal, Quevedo, Lichtenberg, Chamfort, Voltaire, Novalis, Leopardi, Stendhal, Dostoievski, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche, Ramakrishna, Proust, Kafka, Klebnicov, André Breton;
a Ismael Nery, Machado de Assis, Mário de Andrade, Raul Bopp, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral de Melo Neto;
a Monteverdi, Bach, Mozart, Beethoven, Stravinski, Anton Webern, aos inventores do jazz;
aos “primitivos” catalães, a Paolo Uccello, Piero della Francesca, Vittore Carpaccio, Breughel, Van Eyck, El Greco, Rembrandt, Vermeer de Delft, Goya, Mondrian, Picasso, Paul Klee, Max Ernst, Arp;
a Chaplin, Buster Keaton, Eisenstein;
convicto de que acima das igrejas, dos partidos, das fronteiras, todos os homens conscientes, em particular os escritores, devem unir-se contra a guerra, a massificação e a bomba atômica.
Roma, 14-2-1970.
BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia dos poetas brasileiros: fase moderna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1996.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
ROZÁRIO, Denira (org.). Palavra de Poeta: coletânea de entrevistas e antologia poética. Rio de Janeiro: Editora José Olympio 1989.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 até hoje. Rio de Janeiro: Record, 1987.
WILLER, Claudio. História Subterrânea. Revista Cult, n. 50, 2001.