A existencialista francesa, companheira de Jean Paul Sartre, disseminou o feminismo na Europa, dando outra versão à figura estereotipada da mulher. As duas paixões através das quais seu pensamento se desenvolve, a filosofia e a literatura, podem ser encontradas não só na leitura de seus textos literários e filosóficos, mas em uma vida que contestou os limites de dogmas seculares sobre a condição feminina.
Um dos aspectos mais relevantes da escritora e filósofa nascida em 9 de janeiro de 1908 é o fato de ter adiantado em pelo menos vinte anos a revolução sexual.
Publicou, em 1949, sua obra essencial, O Segundo Sexo, páginas de um tratado de corte marxista e existencialista, com uma profunda análise sobre a história do papel do gênero feminino.
A obra inaugurou um discurso que na época foi tachado de subversivo, propondo-se a analisar profundamente algo tão denso e heterogêneo como é a condição feminina. Representa, acima de tudo, um conjunto de análises que fundaram o pensamento do movimento feminista moderno e uma doutrina que demonstra que a evolução desse movimento não é um caminho linear, mas marcado por diversos percalços.
Concluindo pela advertência à necessidade da igualdade entre sexos (que deu origem à Bíblia do Feminismo), Beauvoir defendeu essa igualdade a partir de uma reflexão filosófica própria do feminismo francês, afirmando que sua consecução passava por duas frentes: a conscientização da mulher de que seu papel é apenas uma construção social imaginária baseada em tópicos e mitos criados pelos homens e a exigência de que os homens revisem suas perspectivas em relação a essa construção.
A tese central de O Segundo Sexo consiste em que, no pensamento ocidental, a mulher é expulsa do mitsein humano. Através de uma interpretação sexualizada da dialética hegeliana do Amo e do Servo, manifesta que o Amo se impõe e define a si próprio como o Sujeito Essencial imaterial assexuado (neutralidade sexual), a Consciência.
Essa autoconstituição designa a mulher como Natureza, objeto e ser material sexuado, passível de ser possuída e dominada conforme a vontade do Amo. Nessa concepção, o homem é a razão e a mulher o objeto, a matéria a ser "informada pela inteligência masculina": um “ser-para-o-homem”. A categoria de igualdade, portanto, apenas compete aos homens, enquanto as mulheres são definidas como objetos mediadores das relações masculinas.
Contudo, a afirmação de que a mulher é a Outra absoluta não deve ser compreendida em sentido substantivo. Substantivar e ontologizar a exclusão absoluta, a inferioridade da mulher é uma falácia que não alcança o processo dialético no qual se inscreve sua constituição e, por isso, Simone de Beauvoir adverte sobre o sentido de “ser”.
Ao afirmar “se somos iguais seremos mais livres” o mito do feminismo, defensora do existencialismo europeu mais puro, da mulher como identidade própria, colocou-se de forma desvinculada de um sistema que, na época em que viveu, oprimia e relegava as mulheres à condição de esposa, mãe, filha, a um papel secundário, privadas da liberdade e sem voz. Alçou-se, assim, como símbolo da igualdade que respalda suas teorias mais sólidas, que sustentam que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
A partir – e não apesar – do cunho feminista de sua obra, esta não pode, contudo, ser reduzida ao movimento feminista, pois também se estende sobre a incapacidade do sujeito para evadir-se da morte e para uma reflexão sobre a sociedade parisiense da época e a forma como a vida de uma mulher pode ser marcada por uma figura masculina, apesar – e além - da possibilidade e da necessidade de viverem como iguais.
Assim, a obra de Simone de Beauvoir pode ser compreendida tanto por seu caráter literário como por ser uma obra filosófica que institui uma forma de entender a filosofia de um modo muito particular e pessoal. Sua inscrição no âmbito da filosofia como escritora ou como filósofa, ao mesmo tempo em que é ambivalente e conflitiva, também revela as estreitas relações que existem entre a literatura e a filosofia – que podem ser muito mais estreitas do que se costuma supor.
Seus textos não se eximem da presença desses dois conceitos, tornando muito difícil distinguir literatura de filosofia no projeto literário de Simone de Beauvoir: sob a ótica da literatura, esta parece filosófica e, sob a ótica da filosofia, se apresenta com múltiplas referências a exemplos concretos, ou, mais do que isso, a obras literárias que oferecem “figurações” da existência.
Essa existência, que não é apenas feminina, mas universal, e que se constrói a partir de uma abordagem feminista, revela a grandiosidade, a profundidade e o alcance da obra de Simone de Beauvoir - algo que está sempre por se desvelar e por se compreender.