García Lorca conseguiu representar como ninguém a tragédia e a grandeza do ser humano. Abertamente homossexual, o “poeta mártir” passou à história como um símbolo de resistência, como um homem demasiadamente grandioso para a Espanha de sua época, a tal ponto que foi cruelmente assassinado em agosto de 1936.
Sua adolescência transcorreu em Granada, entre estudos, leituras (que incluíam Rubén Darío, Verlaine, António Machado, dentre outros) e a música (interpretando ao piano Beethoven, Schubert, Chopin, Ravel...).
O que mais chama a atenção sobre García Lorca, nessa época, é o ambiente que era capaz de criar ao seu redor. Na república de estudantes onde viveu por nove anos, sua vida transcorria entre a música, a poesia, a literatura e a atividade criativa e cultural. No ambiente sério e sóbrio do local, era uma explosão de liberdade, de inspiração e de alegria.
Fez muitos amigos, dentre os quais Alberti, Dalí e Buñuel foram seus seguidores mais fiéis. “Viver e ver viver” era o que lhe importava. “Eu, antes de mais nada, sou vidista”, costumava dizer.
Nesta obra já revela um emprego personalíssimo da metáfora e uma atração por motivos folclóricos e tradicionais, assim como certos ecos de vanguarda. Obra fundamental dessa época, embora publicada em 1931, é o Poema del cante jondo, cujo núcleo central é constituído pelo profundo dramatismo da canção andaluz, sobre a qual García Lorca projetou sua dor e sua melancolia.
No ano de 1925 terminou de escrever a obra teatral Mariana Pineda, cuja primeira leitura pública ocorreu em Cadaqués, onde García Lorca se encontrava hospedado na casa do amigo Salvador Dalí. A obra estreou em 1927, em Barcelona, interpretada por Margarita Xirgu, a melhor intérprete do teatro de García Lorca, descobridora e animadora de seu talento para a dramaturgia.
O êxito foi apoteótico: a crítica destacou o excepcional tom lírico de algumas cenas e a estrutura perfeita da ação, além do grande valor poético das canções infantis e do romance da morte de Torrijos e dos touros, incluídos no drama. O sucesso foi o mesmo nas sucessivas reapresentações, tanto em cenários espanhóis como de outros países.
O êxito, novamente, foi imediato, e a edição de Romancero Gitano esgotou-se em poucos meses, obtendo não apenas sucesso entre o público leitor, mas também admiração entre outros poetas e críticos mais exigentes. O gênio poético de Federico García Lorca alcançou a glória e, a partir desse momento, o poeta tornou-se o mais conhecido dentre todos os que configuram a Geração de 27.
Romancero Gitano é composto por dezoito poemas, nos quais se fundem os motivos populares andaluzes com uma técnica refinada, o narrativo e o lírico e a metáfora mais insólita. Sobre ele disse o poeta: “O livro em conjunto, ainda que se chame gitano, é o poema da Andaluzia, e o chamo gitano porque o gitano é o mais elementar, o mais profundo, mais aristocrático do meu país, o mais representativo de sua característica e o que guarda a chama, o sangue e o alfabeto da verdade andaluz universal”.
Definido por García Lorca como “aintipitoresco, antifolclórico, antiflamenco”, o livro traz uma visão do mundo andaluz carregada de emoção e melancolia: “há um único personagem, que é a dor que se filtra pelo tutano dos ossos”.
Basta ler, por exemplo, o Romance de la pena negra ou o Romance sonámbulo para comprovar o tom emocional de uma obra que, estilizando os elementos populares através de imagens de brilhante colorido e musicalidade, alcança uma enorme qualidade poética.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?...
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
- Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
- Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
- Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
- Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
- Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
- Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
- Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
(Romance Sonâmbulo)
Também de intensa força dramática é Llanto por Ignacio Sánchez Mejias, de 1935, longa elegia dividida em quatro partes, em honra ao famoso toureiro morto em agosto de 1934. No poema, novamente se fundem os elementos tradicionais e populares com os cultos e vanguardistas.
O certo é que se trata de um poeta completo, em nada superficial, que canta a profundidade da sua própria alma e da alma de seu povo. Sua vida prodigalizou entrega e simpatia, mas sua poesia falou da dor, do sentido trágico do andaluz, expresso em seu canto flamenco, que é alegria e soluço: “Começa o pranto da guitarra. Quebram-se os copos da madrugada. Começa o pranto da guitarra. É inútil calá-la. É impossível calá-la”.
Federico García Lorca é um poeta visionário, que vai além da realidade refletida no espelho, perscrutando a “outra” realidade, aquela que o verdadeiro poeta deve alcançar através a imagem, da metáfora, da simbologia, da alegoria e da utopia.
Em 1929, talvez para superar uma crise pessoal, aceitou o convite do antigo mestre, Fernando de los Ríos, para viajar aos Estados Unidos. Inspirado por Nova Iorque, escreveu Poeta en Nueva York, em um tom surrealista, denunciando a angústia e a solidão, o medo e a escravidão que existiam por detrás da deslumbrante cidade dos arranha-céus e revelando o fundo trágico de uma civilização mecanizada e exploradora. A técnica surrealista – o versículo, a imagem alucinante – é utilizada para expressar seu ácido desdém pela civilização moderna norte-americana, desumanizada e promotora de profundas injustiças sociais.
De volta a Madri, Fernando de los Ríos, que assumira o cargo de Ministro de Educação Pública, cria um grupo de teatro universitário ambulante, La Barraca, em 1932. A finalidade era a divulgação da obra de Lope de Vega, Calderón de la Barca, Tirso de Molina e outros dramaturgos semelhantes. Com o grupo, García Lorca percorre Castilha, Andaluzia, Valencia, Catalunha e Galícia, durante quatro anos. Por ocasião de uma viagem a Coruña, convidado a realizar algumas conferências, escreveu os célebres Seis poemas galegos.
Sua obra lírica se completa com El diván de Tamarit e Sonetos del amor oscuro, dos quais se conservam onze poemas.
Ainda que sua vida tenha sido curta, sua produção é tão vasta que, necessariamente, não é possível citar todas as suas obras poéticas e dramáticas. Algumas delas, que obtiveram maior êxito e reconhecimento mundial, foram Bodas de Sangre, estreada em 1933; Yerma, de 1934 e La casa de Bernarda Alba, de 1936 (e cuja representação García Lorca não chegou a assistir).
Bodas de Sangre foi levado ao cinema em 1981, por Carlos Saura.
Dramaturgo excepcional, em todas as suas obras há extraordinárias paisagens líricas e intensa força dramática conferida aos personagens, ambientes e conflitos, de inegável dimensão real.
Comparado a Lope de Veja pela combinação perfeita do culto e do popular, por saber colocar-se acima da erudição e da retórica, é considerado um dos mestres da dramaturgia, com suas tragédias rurais, que transcenderam todas as fronteiras nacionais e alcançaram a alma de milhares de pessoas, em todo o mundo.
No verão de 1936, como fazia todos os anos, García Lorca dirigiu-se para Granada. Apenas um mês após a eclosão da Guerra Civil espanhola, a casa em que se escondia foi cercada e ele foi levado, junto com outro prisioneiro, a um barranco próximo e executado.
Os detalhes do assassinato continuam a ser um dos mistérios mais atrativos da Espanha. O certo é que foi vítima do ódio, da inveja e da insanidade. Enquanto seu desaparecimento atormenta a todos quantos o admiram ainda hoje, a tragédia vivida por García Lorca continua a ser uma história desconhecida.
por uma rua longa,
sair ao campo frio,
ainda com estrelas da madrugada.
Mataram a Federico
quando a luz assomava.
O pelotão de verdugos
não ousou lhe olhar a cara.
Todos fecharam os olhos;
rezaram: nem Deus salva-te!
Morto caiu Federico
- sangue na frente e chumbo nas entranhas -
... Que foi em Granada o crime
saibam - pobre Granada!-, em sua Granada.
(António Machado)
- Federico García Lorca: assassinato em Granada (1976), de Humberto López y Guerra
- Bodas de Sangue (1981), adaptação de Carlos Saura
- Lorca, muerte de un poeta (1987), série de televisão dirigida por Juan Antonio Bardem
- "Nanas de espinas" (1982), de Salvador Távora, inspirado em Bodas de sangue
- A casa de Bernarda Alba (1982), de Mario Camus
- O Processo de Mariana Pineda (1984), de Rafael Moreno Alba, série da televisão espanhola
- O desaparecimento de García Lorca (1996), de Marcos Zurinaga
- Morte en Granada (1997), dirigida por Marcos Zurinaga
- Lorca (1998), dirigida por Iñaki Elizalde
- Viagem à lua (1998), curta-metragem de Frederic Amat
- Yerma (1998), de Pilar Távora
- La luz prodigiosa (2003), dirigida por Miguel Hermoso
- Lorca. El mar deja de moverse (2006), documentário dirigido por Emilio Ruiz Barrachina
- Poucas Cinzas (Little ashes) (2008), dirigida por Paul Morrison, documentário semi-biográfico sobre as relações entre Dalí, Lorca e Buñuel
- El deseo y la realidad (2009), documentário dirigido por Rafael Zarza e Fernando García de Canales
- Mudanza (2009), dirigido por Pere Portabella
- Buñuel e a mesa do Rei Salomão (2001), de Carlos Saura
- "Yerma mater" (2005), de Salvador Távora inspirado em "Yerma"
- Bodas de sangre (2010), de José Carlos Plaza.