Nosso país se assemelha mais e mais àquele governado como patrimônio pessoal, particular de seu representante, a pátria cada dia mais é algo que se concretiza como uma bola de vidro nas mãos de um tirano caricato, representação (viva?) do que essa pátria seria – a pátria que ao mesmo tempo em que é “sua”, com ele se confunde. O território, pessoas, animais, recursos, tudo está à mercê de sua vontade, porque tudo lhe pertence, porque ele é o “dono de todo o seu poder” (p. 103).
O patriarca, contudo, tem para com a pátria, em tudo aquilo que não pode tomar para si (ou para os seus) imenso desprezo. Não é patriota: a pátria é algo negociável, é tudo o que pode vender. No discurso de “antes mortos que vendidos” (p. 210) disfarça a verdade de que menospreza a pátria que a potência estrangeira colocou em suas mãos para administrar conforme os seus interesses, que “tem cheiro de merda”, que é povoada por “gente sem história”. (p. 149).
Sua figura causa asco: o corpo “carcomido pelos urubus”, do qual brotam “líquens minúsculos e animais parasitários do fundo do mar”, com “grandes patas de elefante na neve” definem uma figura na qual o humano, o animal e o vegetal se fundem e o grotesco configura uma realidade terrível. (p. 53, 12 e 216).
Cercado de aduladores, é imensamente solitário. É acompanhado por forças militares (relembrando a cena de uma “vaca contemplando o crepúsculo da sacada presidencial” [p. 9] e dos sons das botas dos militares que se assemelham às patas desses animais), que servem ao poder que outorgou pseudo-poderes ao patriarca, mas não a ele.
Em seu outono, o carisma se dissolve a se revela a maldade, a “inconcebível maldade do coração com que vendeu o mar a um poder estrangeiro e condenou-nos a viver frente a esta planície sem horizonte de árido pó lunar cujos crepúsculos sem razão doíam-nos na alma”. (p. 48)
As pessoas o adulam não por respeito, mas por medo, e o regime não se sustenta nem “pela esperança nem pelo conformismo, nem sequer pelo terror, mas sim pela inércia pura e simples de uma desilusão antiga e irreparável”. (p. 142)
Esse é o próximo passo: o patriarca esmagará os “conspiradores” sob as patas do rebanho que habita o palácio e a fé em suas “capacidades extraordinárias” perdurará enquanto sua imagem como o messias do destino de seu povo se mantenha. Quando essa fé se diluir, a força, exercida sem piedade sobre os conspiradores se voltará contra o povo e será o sustentáculo principal de sua autoridade, tão logo o carisma se esgote.
A circularidade da história do messias legendário que passa a ser um tirano cruel e termina como um velho esgotado e solitário a quem o cargo pesa, que reluta, mas não pode “subornar a morte com artimanhas de soldado” (p. 53) expressa a circularidade de nossa história e nossa incapacidade de aprender com ela.
O tempo cíclico da eternidade é marcado, no livro, pela repetição das mortes do patriarca. Essa repetição, contudo, não acaba com a ditadura - rompe o tempo mítico pontual, mas não inaugurará o tempo histórico do povo enquanto esse povo não deixar de esperar por outro patriarca, outro messias, outro salvador, e começar a escrever o seu próprio destino.
Precisamos tomar o palácio, entrar verdadeiramente em seu interior, revelar o cadáver do ditador, punir exemplarmente o rebanho que impunemente contempla o crepúsculo da sacada presidencial (ouvir com os ouvidos do cego o verdadeiro som de suas botas), derrubar de vez o mito irreal do poder ditatorial para acabar com a circularidade do tempo e despertar dessa “letargia de séculos” (p. 5).
Que os sinos e as canções que celebram o fim do sujeito do tempo mítico finalmente possam ser ouvidos, que nos inspirem definitivamente; que as multidões cantem nas ruas o sujeito dos novos tempos antes que seja tarde demais para nós!
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O outono do patriarca. 13. ed. Tradução de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Record, 1993.