Friedrich Nietzsche é o filósofo alemão cuja obra atualmente poucos compreendem, mas da qual se costumam citar recortes como se estes fossem frases de autoajuda, dissociadas de seu sentido e de sua abrangência.
Tradicionalmente, o que a maioria sabe sobre ele é que viveu boa parte da vida na solidão de Sils Maria, na Suíça, fugindo de suas próprias mazelas, longe dos homens e do mundo. Objeto de escárnio, excluído da comunidade acadêmica alemã, finalmente se perdeu na loucura abraçando um cavalo em plena rua.
Mas compreender esse homem e sua obra é exercício perene e sempre incompleto, é um mergulho profundo em uma filosofia que desde sua origem até sua maturidade crescentemente se aprofunda, formulando uma crítica severa da sociedade ocidental decadente e obscurecida por dogmas e irracionalidades.
Os conceitos do super-homem, da vontade de potência e do eterno retorno são profundamente ligados entre si e com o compromisso de dar vazão a uma natureza que não pode restringir-se a interpretações vulgares.
Esses conceitos não podem ser compreendidos a partir de textos aleatórios, mas apenas no contexto de uma obra que recria o mundo a partir da linguagem, da reflexão, da negação e da consciência de que não se pode aspirar à liberdade sem interferir, sem o enfrentamento e o conflito, sem a ação e a reação, sem que se imponha, sempre, um poder a outro, porque tudo deve ser continuamente superado:
– Olhemos-nos face a face. Somos hiperbóreos[1] – sabemos muito bem quão remota é nossa morada. “Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos”: Mesmo Píndaro, em seus dias, sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte – nossa vida, nossa felicidade... Nós descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Quem mais a descobriu? – O homem moderno? – “Eu não conheço nem a saída nem a entrada; sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar” – assim suspira o homem moderno... Esse é o tipo de modernidade que nos adoeceu – a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur[2] de coração que tudo “perdoa” porque tudo compreende” é um siroco[3] para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem os outros; mas levamos um longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos chamaram de fatalistas. Nosso destino – ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos sede de relâmpagos e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos, da “resignação”... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria – pois ainda não havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma meta...
(In "O Anticristo")
[1]Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos, que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu território era inalcançável.
[2] Grandeza.
[3]Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos.
Por uma tentativa de compreensão maior da obra de Nietzsche
Criativo e atual, produz inquietude, insegurança, incômodo, porque questiona princípios decadentes que todos aprendem desde o nascimento; é um rebelde que desafia estruturas poderosas e jamais se dá por vencido.
um espírito?” — Isto se tornou para mim a verdadeira medida do valor. O erro é uma covardia... toda conquista do conhecimento provém da coragem, da dureza para consigo mesmo e asseio para consigo mesmo... Uma semelhante filosofia experimental, tal como a vivo, antecipa, experimentalmente, até as possibilidades do niilismo por princípio: sem querer dizer por isso que possa deter-se ante uma negação, ante um não, ante a vontade do não. Ela quer antes penetrar até ao contrário — até o dionisíaco dizer sim do
mundo, tal qual é, sem desfalque, sem exceção e sem escolha -, quer o eterno movimento circular: as mesmas cousas, a mesma lógica e o mesmo ilogismo do encadeamento. Estado Superior que o filósofo possa atingir: ser dionisíaco em face da existência. Minha fórmula para tanto é amor fati. (Vontade de Potência)
Nietzsche reclama uma realidade guiada por um homem “irracional” – vontade de poder. O super-homem é um homem em quem tenham sido superados todos os erros do ocidente, um homem sem deus, um homem que assuma a vida em toda a sua força. Porque ama a vida, o super-homem é instintividade pura.
No mesmo sentido, desmascara o prazer da crueldade, que se oculta sob a aparência da moral da renúncia e da abnegação (cujos partidários são variações degradadas do asceta, da mesma forma que o filósofo é um tipo degradado do sacerdote), o prazer da crueldade.
O que ressalta o valor maior de Nietzsche é a percepção do aprofundamento de uma moral de espíritos medíocres que ocupam o poder e de espíritos medíocres que se submetem a esse poder, pobres de vontade e de valores elevados, que se sobrepõem uns sobre os outros em relações nas quais está ausente toda e qualquer tendência à vida, toda e qualquer aspiração verdadeira à ascensão do homem, toda e qualquer capacidade de reação e consequente elevação a um patamar de existência superior.