É a primeira escritora brasileira que consegue separar o sujeito em uma perspectiva feminina. Suas personagens, na maioria mulheres, perfilam-se em mundos que as distinguem por sua capacidade de observação e de análise. Seu conhecimento filosófico conforma as personagens, que exibem preocupações através do fluxo da consciência e demarcam as diferenças entre a realidade e o discurso que a produz.
É possível observar o quanto a sua personalidade se encontra dentro e fora de sua narrativa, a tal ponto que inicia sempre a partir de um desdobramento do ser dentro do ser: a condição feminina da escritora e a personagem feminina se fundem no discurso em que flui a consciência que leva as personagens a espaços íntimos de meditação.
Desde as primeiras obras, revela uma inquietante tentativa em explorar as camadas mais profundas da consciência humana em busca do significado da existência. O aprofundamento na análise psicológica realiza-se com linguagem aparentemente simples, mas que revela a constante preocupação de captar a verdade que se esconde atrás das aparências das palavras.
Ao mesmo tempo, seu conhecimento filosófico conforma personagens que costumam exibir preocupações através do fluxo da consciência e demarcar as diferenças que existem entre a realidade do entorno e a palavra que a traduz, entre o fato concreto e a produção de seu sentido.
Além de dominar as formas das técnicas vanguardistas, Clarice Lispector sabe tirar partido delas ao elaborar as personagens femininas e suas consciências, vendo além de cada uma elementos que à primeira vista são invisíveis, mas se evidenciam quando o relato avança.
A problemática feminina, situada no marco da cultura moderna e urbana é outra vertente de sua obra que abre caminho para uma nova série de colocações originais, como as relações paradoxais e as interpenetrações entre o corpo, a identidade feminina, a história oficial masculina e o conhecimento metafísico.
Clarice cria um jogo verbal tão elevado torna o leitor, misticamente, uma das partes dessa construção. Por isso, emprega o nível psicológico e o filosófico: a maioria dos personagens tem conflitos internos de personalidade – inseguranças, medos, inconformidade consigo mesmas e com o mundo... com uma palavra se recolhem e com outra se levantam -, são rostos dela mesma ou, talvez, prolongamentos do que desejou ser e não foi. Enfim, está em cada um de seus personagens, como estes estão em alguma parte dela. É uma escritora excepcional, que viveu além de seu tempo, com uma voz poderosa e inquietante.
Suas obras são exemplos da abordagem de crises através da história íntima das personagens, que insistente e conscientemente procuram, acima de suas próprias limitações, a transcendência de suas próprias impossibilidades. A partir de então, a narrativa modifica seu estilo para indagar, buscar respostas, revelar.
Com absoluta liberdade de temas e a onipresença da escritora e de seus conflitos em todas as obras, todas as descrições, firmemente traçadas através de um estilo apurado, meticuloso, forte, heterogêneo, merecem cuidadosa atenção.
Imensas podem ser - e costumam ser - as abordagens dessas características. Dentre todas, escolhemos Laços de Família (mais precisamente o conto Amor) como representação da magia que "reconceitualiza" o ser e a função da literatura, que traz em si possibilidades infinitas entre a palavra, o corpo, o poder e o conhecimento feminino, retomados através de um estilo altamente ambíguo, paradoxal e dificilmente decifrável, intensificando a expressão poética que caracteriza os seus escritos.
A epistemologia do cotidiano feminino
No conto, a protagonista, Ana, sai, por algumas horas, da inércia de sua metódica vida de dona de casa, ao observar um cego que vê no bonde. A nova sensação lhe traz repulsa, porque subverte o seu conceito de amor como sentimento fechado, mas supõe o descobrimento de seu potencial para ampliar a compaixão para além de sua família.
Desde o princípio do conto se estabelece uma conexão íntima entre a mutável interioridade da personagem e os estímulos externos, a coisas palpáveis, visíveis, que fazem parte dos acontecimentos temporais do universo e são sinais misteriosos de vida, um ser e estar no tempo:
Paradoxalmente, é a partir de uma localidade sociocultural, convencionalmente contraposta no imaginário literário e cultural à natureza que antecede a ordem e artifício da civilização, que o personagem feminino adquire certo contato com um sentido pleno, transcendente. É a consciência do poder feminino gerador de vida e de beleza que conduz à transcendência de signos aparentemente negativos, como são o isolamento, a solidão, a carga crescente de trabalho, a angústia existencial e a inquietude intelectual que nascem da inatividade.
Desde o princípio, a consciência feminina desenha um dinamismo tanto horizontal (fisicamente expansivo) como vertical (penetrador dos profundos resquícios da interioridade) que transborda os limites físicos do lar pequeno burguês:
Esse contato com o sentido de plenitude vital, de ordem e harmonia criado pela mão feminina é corporal, material; é a manifestação da organicidade vital que faz parte de sua interioridade como de sua circunstância:
A inquietude interior, a “desordem íntima” que, em alguns momentos, vive a consciência, se “canaliza” e desordena intencionalmente em corpos ou composições decorativas, formosas, significativas, com peso ontológico de nova realidade. Este trabalho criativo estabelece uma conexão sensorial e intelectual com o corpo do mundo.
Desta forma, a criatividade doméstica é um sinal positivo que produz o conhecimento de um sentido parcial agradável e não de um arrebatado sentido absoluto (a “insuportável felicidade” que, em sua juventude, Ana confundia com um “estado de incômoda exaltação”):
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. (p. 24)
Paradoxalmente, no momento central do dia, tempo em que as coisas aparentam a máxima concordância simbólica e plenitude ontológica, a consciência experimenta uma defasagem ou desconhecimento. A inatividade física produz na consciência um sentimento de solidão e de interconexão com o mundo.
A consciência, então, se reconhece como ser autônomo, excêntrico, que está fora de lugar e que excede o espaço cotidiano que o rodeia. Contudo, são essas periódicas crises ou defasagens (momentos de perigo que produzem medo) que movem a consciência de entabular, com ousadia, novas buscas para conhecer, alcançar novas descobertas e modificar premissas anteriores:
Não apenas a sua cegueira é marca de diferença diante do corpo social viajante que compõe o bonde, mas o movimento mecânico, contínuo, de sua mandíbula ao mascar chicletes. O constante mascar produz no rosto do cego um intermitente sorriso, que é claramente aparente, inexpressivo. Produz-se, então, um deslocamento inicial da consciência diante da atividade física, repetida, vital, absurda, de um corpo alheio.
A falta de visão do homem representa uma discrepância, uma incoerência diante da abertura de seus olhos carentes de toda função e diante do corpo de luz mutável que o revela diante do olhar de Ana e de outros passageiros.
O homem não tem a capacidade de devolver o olhar a Ana. Sua condição de cego reitera, portanto, sua condição de objeto. O homem passa a ser um signo visual contraditório, incoerente, obscuro, ilegível. Esta incapacidade de leitura, de comunicação, de contato significativo com outro corpo, causa uma forte angústia existencial em Ana.
Este ato de (des)conhecimento produz um fenômeno paradoxal. O objeto visual coisificado não é submetido e, consequentemente, anulado pelo olhar feminino, como ocorre no modelo de conhecimento ocidental masculino. O objeto visual adquire maior poder, pois efetua uma transformação espiritual em Ana:
Diante do olhar dos outros, a consciência experimenta um estranhamento diante da própria expressão física e corporal. Agora é seu próprio rosto que adquire uma antiga expressão, que é “inesperada” e “inexplicável”. O evento causa diferentes impressões nos espectadores. O moleque dos jornais se compadece e a ajuda a recolher a bolsa com os ovos quebrados; o restante dos passageiros sorri com distante indiferença.
É o homem cego quem se mostra visivelmente afetado por esta experiência. Deixa de mascar chicletes e de objeto visual indecifrável passa a ser sujeito cognoscente da igualmente obscura circunstância que o rodeia: “O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia”. (p. 26)
A dialética de conhecimento entre sujeito e objeto se dinamiza para produzir uma profunda crise na consciência de Ana. O contato sensorial com a bolsa e os ovos (gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede) perde familiaridade e sentido. O dano resultante desse estado de "estranhamento" diante da realidade temporal e espacial que representa o tecido social é, paradoxalmente, uma revelação sobre a condição momentânea, frágil e contraditória da vida.
A precariedade das certezas, falsamente otimistas, em que se apoia a ordem sociocultural oficial (burguesa, capitalista e patriarcal) são, assim, desmascaradas. Este novo conhecimento não é uma abstração metafísica, mas uma intensa experiência sensorial que fica impressa tanto na consciência e no corpo feminino como no corpo da obra:
O processo para decifrar este corpo ocorre, igualmente, na forma de um contato sensorial, que reproduz a obscuridade, a ambiguidade e a complexidade original. O que a consciência passa a conhecer é o caráter absurdo, utópico, do sentido abstrato, linear, coerente, progressivo da história e do conhecimento oficial – como teorizações generalizadoras, uniformizadoras, que subjugam, exploram e negam o corpo. Isso não resulta em frustração e angústia existencial, em confusão paralisante, em desagregação do pensamento, mas sim no reconhecimento do desafio que significa perceber e agir sobre a infinita pluralidade sensorial em que consiste o mundo, e do corpo como fonte ou princípio fundamental do conhecimento.
Diante da indiferença dos “fortes” que vivem a vida de modo insensível, sem experimentar buscas, crises, revelações, a consciência feminina mostra debilidade, compaixão, um reconhecimento da alteridade irresistível, inalcançável:
A viagem, o caminho ou processo, se desenvolve através de experiências parcialmente iluminadoras, que combinam tanto sentimentos de exclusão, perdição, confusão e solidão como de vivificação, harmonização e pacificação dos sentidos com relação ao espaço circundante. Assim, a busca de conhecimento se manifesta na forma de um declínio vertical em direção às raízes ontológicas do mundo:
O jardim reproduz, em seu seio, estas relações de dependência e intercâmbio mútuo, de contato físico, que é o sinal paradoxal de outros sentidos de harmonia e violência, de vida e morte, de pacífica placidez e crime, de clareza e mistério: “O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. [...] Era fascinante, e ela sentia nojo”. (p. 29)
Perde-se, então, a tradicional relação hierárquica entre sujeito racional dominador e objeto material inconsistente, informe, sobre cujo terreno selvagem, feminizado, se inscreve a ordem masculina da cultura:
A complexa, inesgotável linguagem do corpo, antecede a envolve tudo. A abundância, a monstruosa fertilidade, a opressiva podridão da natureza se contrapõe ao conceito social da maternidade e da compaixão humana:
Ao regressar ao lar, Ana experimenta estranheza e fascínio diante da frágil vida que contém esse espaço doméstico. O conhecimento do caráter mutável, contraditório do mundo – beleza e morte, compaixão e maldade –, a dor e o prazer da verdade que fortalece seu impulso vital.
Desta forma, a criação feminina no âmbito doméstico cotidiano adquire nova autoridade diante da história oficial que se constrói no espaço público masculino.
A criatividade doméstica, privada, deixa de se contrapor ao compromisso social, à atividade humana que tem autoridade como “fato” documentável de ampla transcendência social e política. Os outros sentidos secretos da fértil vida que a consciência feminina descobre em sua viagem pelo espaço urbano e o jardim botânico também fazem parte do lar:
Apenas o conhecimento dessa verdade, da maravilhosa monstruosidade que é a vida, torna possível esse contato, essa realização do ser.
A arte da vida, por Clarice
É uma ficção que procura proclamar a supremacia do humano, os sentimentos humanos acerca do universo - que nos rodeia e nos sustenta - constantemente desordenado, tanto em nível pessoal como coletivo. A constituição complexa, particular e subjetiva, impregnada das impressões da escritora é a marca dessa literatura.
Demonstra a possibilidade de fundir a realidade com a palavra para produzir uma nova realidade, pessoal, inteligível a partir de si mesma. Separando o sujeito dentro de uma perspectiva feminina. Suas personagens vão se perfilando dentro de mundos que as distinguem por sua capacidade de observação e de análise.
A experiência estética de Clarice Lispector, em parte, entende renovar por dentro o ato de escrever ficção. Seu estilo final – para o qual evolui através da interrogação de seus próprios escritos e, através deles, da própria instituição da literatura – coincide com a entrada em suas narrativas de imagens degradantes onde predominam a pobreza extrema e a fome. Compelida, perto do fim de sua vida, a narrar o problema da injustiça social, para ela qualquer “grande” empreendimento literário tornara-se um ideal insensato, se não imoral, a narração mais importante da pobreza no mundo.
Constrói sua arte narrativa complexa de uma forma única, subjetiva, marcada por sensações e por uma capacidade espantosa de atribuir às declarações e a cada palavra uma valorização sem precedentes, uma aparência de novidade, exaustivamente provocando os contornos dos significados, através da metáfora e da aliteração. Demonstra, até mesmo, uma inquietação quanto às coisas que não foram escritas, que permanecem nas entrelinhas, sugerindo sempre novas possibilidades.
Considerando-se que as boas histórias são fruto da necessidade de serem contadas, o mais importante na obra de Clarice Lispector é a forma como emprega a linguagem e seus simbolismos, fazendo com que a história transcenda a si própria e proponha respostas que resgatem o sentido do conhecimento e do reconhecimento das coisas, das palavras, dos sentimentos, dos valores e das convenções.
O conhecimento do feminino que se restabelece no conto Amor, escolhido para esta "visita" à sua obra, ilustra essa arte que, por intermédio das lacunas expressas, dos momentos de reflexão que representam, sintetiza e revela de forma abrangente uma necessidade de projetar-se, através das personagens, além de si mesma.
Assim, através de Ana, como de outras personagens femininas, é a própria Clarice que se revela como mulher, como escritora e como personagem. Enquanto procura se encontrar, se sobressai, conhece, decifra e mostra as complexidades - e as possibilidades - da mulher que ascende como um indivíduo socialmente ativo, criando uma consciência existencial que transcende os paradigmas de gênero culturalmente impostos.