No los veo venir, no los elijo,
de golpe están ahí, son esto,
una bandada de palabras
posándose
una
a
una
en los alambres de la página,
chirriando, picoteando, lluvia de alas
y yo sin pan que darles, solamente
dejándolos venir. Tal vez
sea eso un árbol
o tal vez
el amor.
(Julio Cortázar, in Salvo el crepúsculo, “Cinco últimos poemas para Cris, I”. Alfaguara Literaturas, Madrid, 1994, p. 156)
Sua assinatura, contudo, continua a sugerir sua transcendência, excedendo o tempo e a morte. Cada vez mais, ao longo dos últimos trinta anos, suas intervenções na literatura se reestruturam, se modificam, como manobras póstumas que se inscrevem de forma paradoxal dentro dos limites da sua obra.
Assim, é inevitável que as assimetrias, os anacronismos, as interações involuntárias, as pegadas de antigas verdades literárias continuamente se revelem em outras intenções, em um eterno recomeço...
Como um espectro, pairam sobre a obra de Cortázar suas projeções póstumas e sua escrita se converte em emblema, abolindo todas as estruturas que a realidade tenta impor, todas as noções de uma obra completa, finalizada, passível de classificação.
Cortázar é muito mais do que isso, continua escrevendo, não importa que digam que mais de trinta anos transcorreram...
Has visto,
verdaderamente has visto
la nieve, los astros, los pasos afelpados de la brisa...
Has tocado,
de verdad has tocado
el plato, el pan, la cara de esa mujer que tanto amás...
Has vivido
como un golpe en la frente,
el instante, el jadeo, la caída, la fuga...
Has sabido
con cada poro de la piel, sabido
que tus ojos, tus manos, tu sexo, tu blando corazón,
había que tirarlos
había que llorarlos
había que inventarlos otra vez.
(In Salvo el Crepúsculo, p. 60)
Os títulos são, em princípio, os seguintes: Presencia (1938), Pameos u meopas (1971), Le ragione dela collera (1982, em italiano e em 1995 em edição bilíngue), Un elogio de 3 (póstumo, 1990) e Salvo el crepúsculo (póstumo, 1984). Outros livros em que são incluídos seus poemas são: Dos jogos de palavras I, Divertimiento (1988), Dos jogos de palavras II: Tiempos de Barrilete (1950), El examen (1986), Diario de Andrés Fava (1995), Historias de cronopios y de famas (1962), Rayuela (1963), La vuelta al día em ochenta mundos (1967), Buenos Aires, Buenos Aires (1968) 62/Modelo para armar (1968), Libro de Manuel (1973), Territorios (1984), Un tal Lucas (1979) e Nicaragua tan violentamente Dulce (1983).
Muitos de seus poemas – talvez a maioria deles - permaneceram inéditos, desaparecendo ou divulgados de forma privada; outros foram ficando pelos cadernos, manuscritos ou exemplares mimeografados. Entre os papéis inesperados de Paris, recentemente encontrados, mais quinze poemas surgiram...
A década de quarenta foi decisiva para seus escritos: do esteticismo, da melancolia e da elegia sentimental se voltou às aventuras da vanguarda, à reflexão metafísica, às indagações existenciais e ao compromisso social. O exílio em Paris o converteu em uma voz sólida na defesa das aspirações da literatura, com uma face inegável de denúncia e inovação.
Nos anos sessenta, atingida a maioridade poética de um autor que não abandona sua aspiração de mudanças nem sua autenticidade, os encontros com a revolução cubana e o maio francês imprimem à sua obra outra reviravolta: a poesia se torna o segredo de sua vida.
O poema de Cortázar é, acima de tudo, expressão do possível: o outro eu, a outra realidade, a outra linguagem. Essa consciência e essa esperança são sua matéria-prima. Além do discurso, da configuração acadêmica, das imposições, há uma intenção “irregular”, que converte a poesia em uma aventura, um esforço surpreendente e uma excepcionalidade vital e literária, que não conhece diferenças entre viver e escrever.
Cortázar se converte, assim, em um mago capaz de manifestar alquimicamente outra realidade, a magia da palavra que regressa ao estado mítico do homem e da arte.
Em In memoriam Gieseking se reconhece esse som primordial ao qual o canto remete:
canta, y es lo que oímos. El canto nos devuelve
apenas al sonido primordial, a lo que atisba
el cazador, arriba, en lo más alto,
solo, víctima de su víctima, desterrado.
(In Poesía y poética: Poemas inéditos, Círculo de Leitores, Barcelona, 2005, p. 658)
al oprobio de la infancia, a la saliva dulce de la leche,
al existir en aire y fábula, al modo en que se accede y se conoce,
para conmigo hacerte pan, para en eterno desleírte.
(In Salvo el crepúsculo, “Notre-Dame la nuit", p. 302)
Da mesma forma, a poesia de Cortázar cumpre uma dívida clássica, de raízes românticas, que busca a fusão, no limite, entre a palavra e a vida. A aspiração rebelde e insatisfeita cria um desígnio poético impulsivo, não classificável. A ânsia de renovação e a valorização especial do mundo das sensações, das emoções e dos sonhos, fazem da sua obra poética um contínuo universo romântico.
Em Cortázar, o que prevalece é uma não-lógica, uma metodologia afetiva. Fascinado pelo jazz, desde os primeiros textos de Presencia revela uma essência musical: o jazz é tocado, essencialmente, com um improviso sobre a base de uma estrutura musical que lhe serve de guia; essa improvisação faz com que a mesma música, quando executada diversas vezes, permanecendo a mesma, seja sempre outra. Essa é a textura dos versos de Cortázar: uma poesia na qual a intuição, a mutabilidade e o instante são componentes fundamentais.
Como no jazz, a ordem do poema, sua estrutura, seu estilo, são resultados naturais de um processo humano, de uma insistente busca pela raiz ontológica, que não cede às regularidades do “esteticamente correto”. Contra as artificialidades e a retórica, Cortázar esgrime o argumento na naturalidade surreal.
Para a maioria dos leitores brasileiros, Cortázar é o argentino que escreveu O jogo da amarelinha. É conhecido e lembrado como contista e como “o pai dos cronópios” e como um cronópio ele mesmo. Em princípio, qualquer leitor percebe seus impulsos poéticos, as correntes que atravessam e embasam sua obra narrativa e seus ensaios.
No caso de Cortázar, ser escritor transcende os limites artísticos e as limitações genéricas. Também é inegável que sua poesia leva a um mundo efervescente, variado, apaixonado, poliédrico e fértil. Sua obra completa não pode ser concebida sem esta inestimável contrapartida poética.
Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mí como una luna en el agua".
(Rayuela, Cap. 7, Editorial Catedra, Madrid, 2008, p. 30)