Seu significado, hoje, é o de um escritor que adicionou ao padrão literário norte-americano um elemento estranho à matriz daquela nação. É o especial em meio à banalidade, o estranho em meio aos iguais...
Porém, hoje, é também o escritor ignorado pela academia, considerado fora dos padrões, um mito esquecido pelas novas gerações. O elemento diferencial, contracultural, a reação, o beat, o ritmo, a reversão, o contraponto ao puritanismo e ao capitalismo protestante, contudo, constantemente ressurge.
Kerouac foi e continuará sempre a ser um autoproclamado dostoievskiano, um “nietzschiano zen”, mas também um místico, um artista do excesso, da dor, do vazio.
Sua voz foi o último grito do lirismo, antes que a pop art envolvesse o cenário cultural americano e tudo se transformasse em ironia, paródia e marketing.
O mito de Kerouac na literatura teve paralelos em outras artes: Pollock na pintura e Coltraine na música; todos eles místicos, excessivos, alcoólatras; todos eles são a América. São, como diria Deleuze, a desterritorialização, a fuga que busca esquivar-se ao controle dos valores americanos padronizados – God, Work and Nation - e ressurgir deles.
Kerouac é o fascínio, mas também o cool; a contradição viva; a fuga do controle. Não existem, hoje, escritores americanos que vibrem na mesma sintonia, precisamente porque são todos demasiadamente “integrados”.
É, também, a masculinidade mais complexa. Pertence, a um tempo, à linhagem de homens americanos fortemente masculinos – ícones de virilidade -, mas também não oculta certa feminilidade. Sua sexualidade é algo como “o sexo dos anjos”, distanciando-se de Burroughs ou de Ginsberg – homossexuais - por relações complexas, densas, com mulheres e com homens.
É clara sua admiração pelas mulheres, seu romantismo exacerbado em relação às suas mulheres, bem como sua atração por prostitutas e, simultaneamente, suas relações fraternas com homens. Não há bissexualidade em Kerouac: há experiências, dentre as quais também homossexuais.
Surgido nos guetos negros, o cool era uma tranquilidade no estado anímico, mas não passividade; uma sobriedade nas ações, envolvendo uma dose de sabedoria oriental, sobretudo produto de leituras do zen e do taoísmo. O cool era o desprendimento relaxado e elegante, uma espécie de austeridade chic e distinta, que enfrentava o horror do pós-guerra e a falta de sentido do mundo.
Insuflado pelos sons do jazz, estendeu-se a uma prática cotidiana na vida beatnik, buscando certo legado dos dandys parisienses do final do século XIX. Com Baudelaire como mestre, Kerouac viveu o estado estético das coisas, com fugas místicas fortemente práticas, afastado do cinismo e do compromisso político alienante.
Sua existência cool é própria da idade contemporânea. Nasce no mundo do jazz e do beat, como uma escolha estética e não política – Kerouac sempre foi uma espécie de anarquista de direita, até se tornar um conservador. Sua vida se enquadra em uma existência cool para a qual interessa a poesia, o humor, a mística, a sexualidade e os alucinógenos e que não se resigna a viver como a geração anterior, perdida.
Esse abandono do lado político foi, por sua vez, um ato fortemente político. Os beatniks pretendiam distanciar-se da esquerda marxista e da direita convencional e a atitude cool era a forma pela qual poderiam afirmar seu direito de “estar” poeticamente, ou seja, esteticamente.
A maior lição do extemporâneo Jack Kerouac é a reivindicação da própria vida como elemento de resistência. Evocando novamente Deleuze, o importante é o meio, o caminho. Contra a consciência historicista, sua literatura e sua vida foram o “futuro do presente”.
Sem Kerouac a história de Allen Ginsberg, de Bob Dylan, do próprio Burroughs e de tantos outros dessa geração teria sido outra. Levou para a literatura seu amor pelos improvisos do jazz e com isso marcou toda uma geração de escritores e mostrou aos leitores que a música, as letras e a vida podem encontrar-se em um Aleph.
Em meio à voragem da escrita, cuja expressão máxima é On the road, que remete a um rolo de papiro de milhares de metros, descreveu uma paisagem ao inverso, um caminho que não é percorrido em si mesmo, mas nas suas suspensões, nos hotéis, nas pessoas...
No final da sua vida nada lhe importava e a fama o repugnava. Passou sua última década vivendo com sua mãe e assistindo as poucas entrevistas que concedia, em um estado de lastimável embriaguez. Morreu de cirrose, em 21 de outubro de 1969, aos quarenta e sete anos.
Pouco antes, havia dito: “O que escrevo é o que normalmente um editor rejeita e um psiquiatra considera interessantíssimo”.