Apesar de ter sido favorita em outros anos, a concessão do prêmio à escritora, a julgar pelos fragmentos de sua obra que podem ser encontrados na internet, indicam uma opção política da academia sueca, justificada, inclusive, pelas palavras pronunciadas quando do anúncio, indicando que a concessão se deu em virtude de “sua obra polifônica, que erige um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”.
Embora sejam precoces todas as considerações que possam ser feitas neste momento, pela ausência de obras suas publicadas no nosso idioma, tudo leva a crer que, pela primeira vez na história do Nobel de Literatura, premiou-se uma escritora mais pelo seu trabalho jornalístico do que por seus méritos literários.
O tempo se encarregará de elucidar esse enigma... Aguardemos, pois, a publicação de seus livros no Brasil.
Acredita que hoje, quando o homem e o mundo se tornaram tão multifacetados e diversificados, a arte se serve de documentos para não se tornar impotente, porque assim se aproxima da realidade, captura e conserva o registro histórico, tornando-o compreensível.
Alexievich, em mais de trinta anos de trabalho com documentos e entrevistas e depois de cinco livros escritos sobre eles, conseguiu traduzir testemunhos em sentimentos humanos, escrevendo sobre as crenças e desconfianças, as ilusões, esperanças e temores experimentados por pessoas reais.
Através do que ouviu e registrou sobre os acontecimentos, filtrou sentimentos através dos detalhes para contar histórias de milhares de vozes, destinos, fragmentos da vida de várias gerações, desde a Revolução de 1917 até a atualidade.
A história da alma soviética/russa começou a ser contada em 1983, em A guerra não tem rosto de mulher, no qual trata das milhares de mulheres soviéticas que participaram nos fronts da Segunda guerra Mundial. Essas mulheres, entre os quinze e trinta anos, foram pilotos, condutoras de tanques, soldados, franco-atiradoras, e não apenas enfermeiras ou médicas. Contudo, depois da vitória, os homens as esqueceram, “roubaram-lhes a vitória”.
No livro, mulheres soldados falam dos aspectos da guerra que os homens nunca mencionam, sobre abordagens como o horror de andar por um campo coberto de cadáveres de jovens soldados e sentir compaixão por todos eles, tanto russos como alemães.
Em 1985, em Últimas Testemunhas, ressurgem as recordações da guerra, sob o ponto de vista de crianças entre seis e doze anos de idade, descritas através de seus olhos.
As Crianças de Zinco, de 1989, trata da guerra de dez anos entre o Afeganistão e a União Soviética, compondo-se de histórias contadas por mais de uma centena de oficiais e soldados, viúvas e mães de vítimas do confronto. Através delas, desenha um cenário cruel e sem esperanças, do qual tudo o que os personagens desejam é deixar de lutar, deixar de matar outros homens, “deixá-los em paz”. A publicação do livro foi alvo de polêmicas à época e a escritora foi acusada de profanar a memória dos heróis da guerra.
Apesar – e talvez em razão – disso, em 1993, após a queda da União Soviética, abordou o que considera como sendo o fracasso da utopia comunista em Seduzidos pela Morte, escrito a partir de reportagens sobre suicidas inconformados com a abertura do regime soviético.
No ano de 1997 lançou Vozes de Chernobyl: crônicas do futuro, em que associa o desastre ocorrido em Chernobyl à queda do regime soviético, tratando ambos como catástrofes. Considera, ancorando-se em relatos orais de centenas de pessoas, que o segundo desastre ocultou o primeiro, porque a preocupação imediata e compreensível para aqueles que viveram este momento era o final da União Soviética. Ao abordar a catástrofe de Chernobyl – a primeira catástrofe – e associá-la à primeira, afirma que “a fórmula sanguínea e os códigos genéticos mudam, paisagens familiares desaparecem”, mas para compreender plenamente o que está acontecendo, “é necessária uma experiência humana e um instrumento interior diferente, o que ainda não existe”.
Para os personagens, a visão e o olfato ainda não percebem o novo inimigo, a radiação. As palavras e os sentimentos não se ajustam ao que aconteceu em Chernobyl e à experiência do sofrimento dos que viveram o desastre, pois apesar desse fato ter sido pior do que aconteceu nos gulags e no holocausto, a medida do horror permanece sendo a guerra e as consciências não alcançam percepções maiores do que isso.
Ao escrever sobre Chernobyl, Alexievich questiona-se sobre a semelhança entre os homens e os eventos, considerando que os eventos relatados por uma pessoa constituem sua própria vida, mas quando relatados por muitas pessoas, constituem sua história, que permanece um enigma e um desafio para toda a humanidade.
A primeira indicação de Svetlana Alexievich para o Nobel de Literatura ocorreu em 2013, ano em que publicou Tempos de segunda mão, o último livro da série que começou a ser escrita trinta e cinco anos antes e uma metáfora da inaptidão do homo sovieticus para o novo, da sua incapacidade para a liberdade. Os tempos de segunda mão são tempos velhos, tempos nos quais o ódio não pode ser erradicado, nos quais a metade da Rússia apenas se debruça sobre o pensamento de “determinar se alguém é inimigo ou amigo da causa”.
Muitos dos personagens do livro relatam que quando seus amigos foram presos por publicarem livros proibidos, acreditavam que o mais importante era lutar pela liberdade, mas quando a liberdade chegou, “correram na direção oposta”:
Svetlana Alexievich - Voices form Big Utopia, 2006.
"Writhing for peace: how mighty is the pen?" - Entrevista concedida ao Canal DW, em outubro de 2013.